Celebra-se, no dia 13 de novembro, o VI Dia Mundial do Pobres. A mensagem que o papa Francisco dirige às comunidades cristãs tem por tema “Jesus Cristo fez-se pobre por vós” (cf. 2 Cor 8, 9) e é apresentada “como uma sadia provocação para nos ajudar a refletir sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora atual”.
Ainda sem estarmos totalmente libertos da pandemia de COVID 19, ainda que agora saibamos lidar muito melhor com ela, eis-nos envolvidos numa guerra obscena que vem aumentar o número, igualmente obsceno, de seres humanos a viver na pobreza. A voz de Francisco não se tem calado, na denúncia clara deste acontecimento e em muitas ocasiões tem-se elevado implorando pelo fim deste iníquo absurdo (confesso que me apetecia usar palavras ainda mais duras), como em tantas outras deixa perceber a mágoa e a dor pelo que estamos a assistir.
De novo, nesta mensagem, ecoa aquele “não te esqueças dos pobres” que lhe foi dirigido logo após a sua eleição como bispo de Roma. Nele se condensa, igualmente, aquela prática das comunidades cristãs que a Sagrada Escritura e a Tradição testemunham e que pode e deve ser tomada como sinal identitário – ‘marca de água’ – daqueles que se dizem seguidores do Ressuscitado. É precisamente dentro desta grande tradição que Francisco volta a fazer sentir e ouvir o seu apelo: “este é o momento de não ceder, mas de renovar a motivação inicial. O que começamos precisa de ser levado a cabo com a mesma responsabilidade”.
O inverno, que já muitos começaram a sentir, vai ser certamente um enorme desafio à esta motivação e esta responsabilidade. Esta é mesmo a altura de fazer aquilo que estiver ao alcance de cada um porque “no caso dos pobres, não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através dum envolvimento direto, que não pode ser delegado a ninguém”. E todos podemos fazer algo, por mais pequeno que seja. O que não podemos mesmo fazer é ficar indiferentes e parados, porque isso é contrário à nossa fé.
A vocação a que Deus chama cada ser humano é a vida e a vida em plenitude, por isso, não nos devemos, não podemos mesmo, contentar-nos com menos. Nesta mensagem Francisco não se contenta com menos e por isso denuncia com veemência as situações e atitudes que não promovem essa plenitude de vida:
A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspetivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer.
A pobreza, não os pobres, não tenhamos medo de o afirmar, é um pecado que ‘brada aos céus’.
Por vezes, demasiadas vezes, esquecemo-nos disto e andamos muito preocupados com a doutrina e o culto, avaliando a verdade e a fidelidade da nossa opção crente simplesmente pelo modo como ela se harmoniza, ou não, com essa mesma doutrina, a que muitas vezes parece que damos o próprio estatuto que tem a Palavra de Deus, ou pelas vezes, que praticamos, ou não, o culto. Sem dúvida que esses são elementos importantes que não podem faltar nesse exercício de avaliação. Mas eles não podem ser os únicos, não podem ser absolutizados, não podem substituir o cuidado que deve ser dado à pessoa, a cada pessoa.
Esse é o testemunho daquele em que dizemos acreditar. A sua atenção e o seu cuidado sempre se focaram nas pessoas, dando uma especial atenção aos mais frágeis e necessitados. Este é o paradoxo da fé, de que esta mensagem faz eco:
O texto do Apóstolo a que se refere este VI Dia Mundial dos Pobres apresenta o grande paradoxo da vida de fé: a pobreza de Cristo torna-nos ricos. Se Paulo pôde comunicar este ensinamento – e a Igreja difundi-lo e testemunhá-lo ao longo dos séculos – é porque Deus, em seu Filho Jesus, escolheu e seguiu esta estrada. […]. Se quisermos que a vida vença a morte e que a dignidade seja resgatada da injustiça, o caminho a seguir é o d’Ele: é seguir a pobreza de Jesus Cristo, partilhando a vida por amor, repartindo o pão da própria existência com os irmãos e irmãs, a começar pelos últimos, por aqueles que carecem do necessário, para que se crie a igualdade, os pobres sejam libertos da miséria e os ricos da vaidade, ambos da desesperança.
A celebração do dia mundial dos pobres não pode ser simplesmente mais uma celebração que se vem juntar a tantas outras que são propostas ao longo do ano (e esse é um perigo a que não podemos deixar de estar atentos). Ela tem de ser ocasião para incentivar as comunidades cristãs a continuar o seu compromisso com a mudança de estilos de vida e o seu combate com as inúmeras pobrezas da hora atual.
Foto da capa: O iníquio absurdo da guerra. Ucrânia, 11 de outubro de 2022. Foto EPA/ATEF SAFADI.
You must be logged in to post a comment.