Uma nova janela

Hoje, inauguro-me. Uma nova janela abre-se para o olhar. Na escrita, nasço. Desnasço. Enquanto nasço, a palavra se converte em oração, onde pousa a eternidade dos lírios brancos que, em ramo, florescem a vida. Enquanto desnasço, o novo acontece.

O meu pequeno Santo António, instalado na entrada da casa, sorri suavemente. Ele me esboça um sorriso leve, como se fossemos cúmplices e amigos de sempre. Com ele, sigo todos os dias para visitar aldeias distantes – feitas de realidade e sonho. Ele me guia nas viagens diárias e juntos mergulhamos em territórios sagrados, onde palavra reinventa a vida em todas em todas as suas ficções – do real ao imaginário, narramos os nossos pequenos e largos cotidianos. Tudo pode ser invenção. Tudo é reinvenção.

Narrar é uma espécie de viver-para…, ultrapassando os limites de todos os sólidos e estreitos cotidianos, buscando a realização de travessias diárias. Ao narrar, narro-me e reinvento-me na flor, na luz, no mar, no céu, nas florestas e no outro; desejando em tudo, a epifania que inaugura todos princípios. Onde começo, recomeço. Findo. Ao findar-me, encontro o outro em toda a sua pujança – o ser em construção permanente. No estranho da vida, colho os sentidos possíveis e transito pelo incógnito que define os nossos cotidianos.

Naquilo que vejo, sinto o precário e o eterno. Segundo a personagem protagonista dos Irmãos Karamazov de Dostoiévsk, o problema existencial consiste no fato do ser humano ser “demasiadamente largo”. Complexo. Seria bom se pudéssemos estreitá-lo. Mas não podemos. Então, seguimos sendo humanos. A personagem também nos orienta e diz:

Eu creio que se deve amar a vida sobre todas as coisas. – Amar a vida, sem considerações nem lógica, (…); quando não nos importarmos com a sua lógica compreenderemos o seu sentido.

Sigo nesta ideia e distancio-me de procurar lógica para o existir, permitindo que os meus cotidianos sejam inundados pelos sentidos da vida, enquanto evento numinoso.

Amo as orquídeas que estão suspensas na minha janela. A natureza nasce por nascer e não busca a lógica da sua beleza ou exuberância, nem deseja servir a nada. Nem sequer deseja qualquer coisa. O seu sentido é nascer-sendo a beleza e a exuberância – assim, sem intenções, torna-se um abrigo para os olhos e nos recupera das faltas.

Quando vejo as orquídeas ou os alecrins que douram os campos, apenas sinto a beleza do que vejo. O que vejo constrói a minha subjetividade. Logo, a cada escolha de como olho a realidade, sinto-me reconstruída por uma espécie de experiência sinestésica e metafísica.

Fernando Pessoa e sua poesia são a orquídea e os campos dourados. O vento, a chuva e o mar… muito haveria por dizer da construção da subjetividade como produto das culturas e destas como produto do olhar.

Nos tempos de selvageria do capital, não temos tempo para olhar e ver. Nem para os exercícios contemplativos.

Acredito na superioridade da vida, enquanto valor que constrói as dimensões do bem. Acredito no amor como superação da dor e do sentido humano que se impõe como arquitetura das nossas interações afetivas. Acredito no humano e na sua vocação para o amor, enquanto pulsão de vida.

É a acreditar na capacidade para resignificar a vida que sigo a rotina – levantar-me, ouvir música (hoje, sonatas de Schubert). Desperto com a música. Vou até a cozinha e preparo o chá (rooibos com canela ou jasmim). Sigo os labirintos da casa com a chávena a aquecer-me as mãos. A porcelana com a sua brancura espessa é o cenário das borboletas azuis.
Pouso o chá sobre a mesa e vou à janela. Quem me dera voar como as borboletas, mesmo que fosse para ser “mariposas de azeite”. Deve ser bom ter asas que voam sempre. Foi nas asas de borboletas que o meu olhar atravessou a janela. Um espanto: nascia mais uma orquídea. Era rosa-veludo e muito pequenina.

No fundo daquele cenário, onde flutuava a flor, eu vi o céu gris de um inverno chuvoso, surgindo como um manto quase-escuro, riscado com pequenas rajadas brancas que pareciam pássaros de cristal.

Orquídeas, foto Joana Cavalcanti
Orquídeas, foto Joana Cavalcanti

Nasci para mais um dia. É preciso agradecer por todos os infinitos da alma.

Como moldura para a orquídea, surge uma sólida montanha. A sua solidez não é um impedimento para o olhar, antes um convite para a descoberta dos rios e regaços. Assim, meu o olhar, vestido de rosa-veludo, amanheceu para além das montanhas e batizou-se nas águas fluídas do rio por detrás da alta geografia. O sino da igreja ressoou. Fechei a janela e recolhi com os olhos a orquídea flor, as montanhas e o que existe para além delas.

Segui caminho a pensar nos acontecimentos recentes: o susto de uma pandemia que matou milhões de pessoas no mundo, a experiência inusitada do isolamento social, o confronto com os limites da vida e da morte. Além disso, as guerras que se multiplicam no mundo e em nós. Somos também a Ucrânia, o Irão e o Afeganistão.

Antes de iniciar as aulas na faculdade, uma aluna estava à minha espera. Vestia um casaco rosa e tinha um chapéu branco. Olhou-me e perguntou:
— Professora, posso lhe dar um abraço?
Abracei-a. Despedimo-nos. No outro dia, abri a janela e havia nascido mais uma orquídea. Era rosa-veludo e usava um chapéu branco. Passei pela imagem do Santo António e escutei:
— Bom dia!

Foto da capa: Marlene Reis, fotógrafa mineira de Ouro Preto, Brasil

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