Uma carta com um olhar diferente

Artigo de Gilberto Borghi e Chiara Gatti


Uma revista folheada por acaso numa sala de espera. Uma carta que capta o interesse e, sobretudo, oferece um novo olhar sobre uma vida quotidiana, só aparentemente banal. Estou sozinha na sala de espera de um médico, onde tenho consulta marcada. Enquanto aguardo a minha vez, folheio uma revista colocada sobre a mesa. Entre as várias “Cartas ao Diretor”, aparece uma que me intriga imediatamente:

Prezado Diretor, chamo-me S. Decidi escrever esta carta, embora saiba muito bem que o senhor não é psicólogo nem padre e, por isso, talvez não seja a pessoa mais indicada para falar do meu trabalho interior. No entanto, vi que, na seção de “Viagens” da vossa revista, publicaram uma reportagem sobre a África Central… Confesso que, apesar de a vossa revista não ser uma revista missionária, gostei do estilo editorial: nada retórico, muito respeitoso daquelas gentes e dos seus terríveis problemas que, talvez nós, aqui em Itália, nem podemos imaginar. 

Bom, venho ao ponto da questão, confessando a culpa que sinto por não ter sido capaz de partilhar a minha vida com aquelas pessoas, aliviando-as de alguma forma na sua terrível condição, com a minha ajuda, embora infinitamente pequena. Quando era jovem (agora tenho cerca de quarenta anos), o meu namorado e eu frequentávamos o Oratório Salesiano e, aos poucos, surgiu em nós o grande desejo de partir para realizar o projeto que tínhamos a certeza que Deus nos havia dado: viver numa missão que conhecíamos, em Angola.

Assim, logo que casamos, preparamo-nos para partir. Quando, porém, tudo estava pronto, o pai do meu marido morreu repentinamente, deixando a sua esposa com dois filhos ainda pequenos e com poucos recursos para poderem concluir os seus estudos. O meu marido, mesmo não sendo pressionado pela mãe, tornou-se, como irmão mais velho, o principal suporte da sua família de origem. Entretanto, eu encontrei trabalho numa repartição dos Correios e, assim, pudemos mudar de casa escolhendo um apartamento maior, próximo da casa da minha sogra que, entretanto, começou a perder rapidamente a vista por causa de uma doença ocular muito grave. Meu marido trabalhava, num supermercado, bastante longe de nossa casa. Minha sogra precisava de uma assistência constante e, apesar dos dois filhos que, entretanto, tivemos, nunca deixámos de cuidar dela.

Os meus filhos, um menino e uma menina, apesar de nós pais não termos podido acompanhá-los como teríamos gostado, por causa do trabalho e do cuidado para com a minha sogra, cresceram serenamente, entre jardins de infância, a solidariedade dos amigos do condomínio e os imprevistos próprios da idade. 

No entanto, eu pensava sempre em África e como eu, formada em história, teria podido ajudar as crianças e os adultos daquele continente; e, também, como o meu marido poderia ter ajudado profissionalmente as pessoas daquelas terras (ele tinha um diploma do instituto técnico superior).

Que fracasso, todos os nossos sonhos, o nosso ideal de pobreza evangélica e a partilha total com os mais desfavorecidos! 

Hoje admirei e invejei a ONG que a vossa revista mencionou no artigo, que leva para a África ajuda, medicamentos e assistência hospitalar. Enquanto eu, ao olhar para a minha vida, vejo-a cinzenta e sem sentido! Desculpe o meu desabafo. De qualquer forma, obrigado pela paciência de me ouvir. Atenciosamente”.


Querida Sra. S, obrigado pela sua carta, para mim tão sincera quanto perturbadora. Antes de tudo, digo-lhe que não sou nem padre, nem crente… portanto, quando a senhora fala de pobreza evangélica e do projeto que Deus lhe tinha confiado, não entendo muito bem o que é que isso quer dizer.

No entanto, desculpe a franqueza, acho que a senhora precisa de um novo par de óculos com “lentes cor de rosa” para reavaliar tudo o que a rodeia e que constitui diariamente a sua vida.

Não acredito, por exemplo, que a ajuda que a senhora certamente dá aos imigrantes que chegam ao seu balcão para preencher uma ficha do correio “vale” menos do que ensinar o alfabeto português num descampado, algures em Angola, bem como não penso que a sua entrega contínua aos seus filhos, ao seu marido, aos filhos dos seus amigos do condomínio e à sua sogra, tenha menos valor do que tratar de uma pessoa doente numa aldeia africana ou estar perto de uma mulher que dá à luz na sua cabana perdida no mato.

Eu poderia continuar esta comparação por mais tempo, mas a senhora é suficientemente inteligente para entender o que lhe quero dizer.

Concordo consigo que, talvez, a África lhe daria uma maior leveza de coração e lhe transmitiria a certeza de ser “uma pessoa boa, pobre e evangélica”, mas estou convencido que existem muitas maneiras para ser verdadeiramente pobre e para viver esse Evangelho, que a senhora certamente conhece melhor do que eu.

Os óculos, que eu próprio gostaria de lhe dar, poderiam servir-lhe para entender não apenas a grandeza, mas sobretudo a beleza que existe na sua vida, uma vida que a senhora não escolheu, mas que, como acontece com frequência, soube aceitar sabiamente assim como ela veio.

Desejo que, mais cedo ou mais tarde, possa visitar a África e apreciá-la, com as suas cores maravilhosas, juntamente com sua família. Saúdo-a calorosamente”.


Foto da capa: Mãe com dois filhos sentada num banco de jardim. Foto: Benjamin Manley | Unsplash.

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