Meu o testamento
Ruy Cinatti, Meu o testamento
a quem o dito, a quem o testemunho,
a quem o transmito,
antes mesmo de iludir a forma
de que me revisto.
O estilo será outro, mas a forma
é imortal
e chama-se alma.
Que ma tomem os que ainda pressinto
terem o íntegro
poder de audácia
revolucionária
por nunca se satisfazerem com o mínimo
neles apenas surto
de começos sempre no plural.
A capa era cinzenta. A fotografia a preto e branco, ao centro e ao alto, estava emoldurada por uma linha vermelha, a mesma cor usada nas letras gordas do título, que encimava a imagem. O nome da autora, Jill Jolliffe, ficava na margem inferior da capa, a preto, bem como o elegante logo da editora, O Jornal.
Li Timor, terra sangrenta, nessa edição de 1989, mas não me recordo muito do conteúdo do livro. Lembro-me, sim, de ficar horas a admirar a capa, olhando para a cabeça decapitada que uma das três figuras retratadas segurava pelos cabelos. Lembro-me de comparar os olhos abertos desses três homens com os olhos fechados daquela cabeça, mas via com perplexidade a mesma expressão tímida nos quatro rostos.
Na foto completa, no centro do livro, vemos mais homens, armados e fardados da mesma maneira atabalhoada com que pousam para o retrato, sem os expectáveis corpos retos, sem o queixo levemente erguido, sem os olhos fitos na câmara. Toda a violência, o desafio e o aviso aos inimigos, estão naquela cabeça suspensa pelos cabelos.
E no entanto, não era a violência que me impressionava, era a estranheza do conjunto: os olhares, as feições, a indumentária, a paisagem, reforçavam a distância para aquele território cuja relação com Portugal era para mim, aluna atenta das aulas de história, muito confusa.
Essa cabeça suspensa, esse cinzento claro da capa sulcado pelo vermelho das letras, a condizer com o adjetivo sangrento, foram o meu primeiro contacto consciente com uma causa. Não no sentido de “motivo, origem, facto”, mas no sentido de… sentido. Uma razão em que acreditamos, uma razão para acreditar.
Porém, a causa não era fácil de resolver nem muito popular como tema no espaço público. No outro lado do mundo, num outro hemisfério, havia um território e umas pessoas que eram uma “causa perdida”. Umas pessoas e um território que faziam parte de um passado nacional disfórico, e aqui, em Portugal, um país e umas pessoas que tentavam ressituar-se no curso da história perante si e a Europa.
A Indonésia invadiu Timor-Leste em dezembro de 1975 e a cronologia desejável da descolonização no Pacífico ficou suspensa e até esquecida ao longo de muitos, muitos anos; com breves interrupções para relatos pontuais de manobras da resistência e a ocasional referência ao facto de as Nações Unidas nunca terem reconhecido a integração do território na Indonésia (mas os Estados Unidos, sim, em 1977). Em Portugal, a atenção da opinião pública foi sendo mobilizada por grupos daqueles que não temem as causas e nunca as veem perdidas.
Mesmo sem saber datas exatas, o leitor certamente se recorda das imagens da visita do Papa João Paulo II a Timor-Leste (12 de outubro de 1989), do cemitério de Santa Cruz (12 de novembro de 1991), da viagem do navio Lusitânia Expresso (1992), da captura e julgamento do líder da resistência, Xanana Gusmão (1992, 1993), entre outros momentos mediáticos que, a partir do início da década de 1990, aceleram o ritmo para o ano charneira de 1999.
Quem acredita e defende uma determinada causa conhece bem as críticas, porque as ouve constantemente; centram-se normalmente em argumentos de “hierarquia de causas” (há sempre problemas mais importantes) e na “eficácia da ação” (não vais acabar com o problema). Há também o argumento da “sanidade mental” (passas a ser um dos maluquinhos que perdem tempo com isso) e o clássico da “militância política” (vê-se logo que és comuna). Quem acredita e defende uma determinada causa não é imune a essa argumentação, porque também conhece o desânimo e porque reconhece as próprias limitações.
Acreditar numa causa implica fazer escolhas, todavia não acreditar em nenhuma é igualmente uma escolha. Escolher a desistência. É minha convicção que, como cristãos, temos esta responsabilidade e esta exigência que nos vem do exemplo de Jesus, aquele de quem se escreve nos Atos “andou de lugar em lugar, fazendo o bem”.
A personalidade individual, a experiência vital de cada um, aproxima-nos de diferentes temas. Sem discutir hierarquias, sem ficar presos à necessidade de concretizar um objetivo, sem perder o discernimento, as causas inspiram-nos, permitem criar laços, ajudam a exercitar a empatia e tornam-nos agentes do bem. Uma causa é um ponto de fé no futuro, um ponto longínquo que nos ilumina desde a distância e por isso nos amplia o horizonte. A causa é a utopia que nos torna mais humanos, mais próximos dos outros, mais exigentes connosco e com a procura da justiça, da felicidade, enfim, do bem para todos.

Manifesto maubere, porventura o mais conhecido poema de Fernando Sylvan (Díli, 1917, Cascais, 1993), começa assim: “A cultura é a memória/de um povo que não morre!”. Conheço este poema há muitos anos; li-o e reli-o vezes incontáveis e continuo a pensar na ambiguidade do “que”, que tanto pode referir-se a “memória” como a “povo”. A possibilidade desta dupla interpretação reforça a dinâmica íntima entre cultura, memória e identidade. Sem memória não podemos construir futuro, ou pelo menos não podemos construir um futuro mais justo. Por isso, no início de 2019, quero evocar o ano de 1999, a partir do qual se tornam firmes os passos que culminaram na independência de Timor-Leste em 2002.
Foram muitos os escolhos no caminho, mas foram vários aqueles que teimaram numa causa perdida. Em 1982, por ocasião da visita de João Paulo II a Portugal, um grupo de cristãos fundara uma associação cívica com um título que nada deve a qualquer estratégia de comunicação, mas que é todo um programa de militância cidadã: A Paz é Possível em Timor-Leste. Eles são um exemplo de compromisso, de coragem e de ação fora da agenda e a contra-corrente; são uma prova de que uma causa é um ponto longínquo que nos amplia o horizonte e de que sem o ponto de fé no futuro também não há passado.
Essa é uma história que deixo para vos contar mais tarde.
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