Um olhar sobre uma crise profunda

De dois em dois anos, a Fundação AIS – Ajuda à Igreja que Sofre – publica um Relatório sobre a situação em que se encontram as comunidades cristãs mais oprimidas e discriminadas em todo o mundo por causa da sua fé.

Mapa comparando os países com perseguição aos cristãos em 2017-2019.
Mapa comparando os países com perseguição aos cristãos em 2017-2019.

Este ano, o Relatório sobre o período 2017-2019, intitulado “Perseguidos e esquecidos?” foi apresentado, no dia 23, em Lisboa, no Centro Nacional de Cultura, por Paulo Portas, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros. A sessão de apresentação contou ainda com a presença do padre Gideon Obasogie, oriundo da Nigéria, precisamente um dos países onde a intolerância e a violência contra os cristãos está mais acentuada.

O Cristianismo é a religião mais perseguida do mundo. E, no entanto, muitos têm uma ideia pouco clara da dimensão da crise. Há muitos anos, que a instituição Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) dá voz a estes Cristãos sem voz.

Perseguidos e esquecidos? Um relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé apresenta os resultados das pesquisas contínuas da AIS, avaliando padrões recentes de ódio e discriminação.

Esta edição, que analisa o período de julho de 2017 a julho de 2019, concentra-se nos principais desenvolvimentos em 12 países onde o sofrimento dos Cristãos é particularmente grave.

Explosão de uma bomba na Catedral Maronita, em Alepo, Síria.
Explosão de uma bomba na Catedral Maronita, em Alepo, Síria.

Médio Oriente

No Médio Oriente, após a derrota militar do Daesh (ISIS), em 2017, a violência contra os Cristãos diminuiu; mas as evidências sugerem que os radicais islâmicos deixaram para trás um legado de crescente hostilidade em relação aos Cristãos provocado por militantes que atuam na clandestinidade.

O genocídio, a pobreza extrema e o islamismo dizimaram as comunidades Cristãs no Iraque e na Síria. Em algumas cidades, a probabilidade para o desaparecimento do Cristianismo está a aumentar cada vez mais.

RITA HABIB

Rita Habib - Prisioneira do Daesh (ISIS) regressa a sua casa em Qaraqosh, Iraque, abril de 2018
Rita Habib – Prisioneira do Daesh (ISIS) regressa a sua casa em Qaraqosh, Iraque, abril de 2018

Rita Habib – uma das mulheres cristãs raptada em Qaraqosh pelo Daesh (ISIS) e forçada a ser escrava sexual – pôde finalmente voltar a juntar-se ao seu pai. Habib tinha sido transferida de Qaraqosh – a última cidade de maioria cristã no Iraque antes de cair nas mãos dos islamitas – para Mossul, antes de ser novamente transferida uns meses mais tarde para a Síria.

Rita descreveu a miséria que enfrentou: “Fui comprada e vendida quatro vezes. Eles fizeram-nos coisas muito más. Bateram-nos e violaram-nos… O pior de tudo foram as violações de raparigas com nove anos”.

Habib foi salva por membros da Fundação Shlama que fingiram ser jihadistas num leilão de escravos do Daesh e que a compraram por 20 000 dólares. Rita disse: “Estou muito feliz por poder voltar a estar com o meu pai passados três anos. É um momento de grande alegria, porque ele é a única família que me resta”.

Apenas sete das mulheres raptadas em Qaraqosh regressaram. Calcula-se que o número de mulheres sequestra

A missão Carmelita, em Bozoum, República Centro Africana, acolhe 4500 deslocados internos, após a destruição das suas casas por milícias.
A missão Carmelita, em Bozoum, República Centro Africana, acolhe 4500 deslocados internos, após a destruição das suas casas por milícias.

África

Em algumas partes de África, da Nigéria, no Ocidente, a Madagáscar, no Oriente, os radicais islâmicos estão a tentar eliminar o Cristianismo usando a violência e a coerção.

A Nigéria é o país onde mais cristãos são mortos. Há um objetivo claro de, diz o bispo Wilfred Anagbe: “islamizar todas as áreas que atualmente são predominantemente cristãs”. Os relatos indicam um aumento nos ataques, nomeadamente, por parte do grupo islamita militante Boko Haram.

Os ataques dos radicais islâmicos contra os Cristãos aconteceram “uma e outra vez” no Burkina Faso e aumentaram na República Centro-Africana.

Em alguns países de África, como o Sudão, Marrocos ou Eritreia, a principal ameaça para os Cristãos vem do Estado, com renovados atos de repressão.

No Egipto continuam os protestos contra as igrejas em construção, raptos de mulheres e atentados à bomba.

Na China foi proibida a venda online da Bíblia, até que surja uma nova versão compatível com a sinização (processo de assimilação da cultura chinesa) e o socialismo.
Na China foi proibida a venda online da Bíblia, até que surja uma nova versão compatível com a sinização (processo de assimilação da cultura chinesa) e o socialismo.

Ásia Meridional e Oriental

Na Ásia Meridional e Oriental a situação dos Cristãos deteriorou-se muito. Dois dos ataques mais graves contra Cristãos realizados por radicais islâmicos no período abrangido pelo relatório ocorreram no Sri Lanka e nas Filipinas, deixando centenas de pessoas feridas e mortas.

Nesta região, um crescente nacionalismo e autoritarismo de Estado emergem como as principais causas para a perseguição Cristã.

Anteriormente, a Coreia do Norte, onde “os cristãos são rotineiramente presos em campos de trabalho”, foi identificada como o pior lugar do mundo para se ser cristão. A situação continua tão má que dificilmente poderia tornar-se pior.

Na Índia, a principal ameaça ao Cristianismo vem do nacionalismo Hindutva. Mais de 1 000 ataques a cristãos foram relatados e mais de 100 igrejas foram fechadas. Os militantes e oficiais do Estado intensificaram uma campanha de intimidação contra os Cristãos.

Os ataques extremistas hindus também aumentaram no vizinho Sri Lanka, onde o principal alvo foram os cristãos e os muçulmanos.

O pior ataque ocorreu no Domingo de Páscoa de 2019, quando extremistas islamitas atacaram à bomba várias igrejas cristãs, entre elas a Igreja de Santo António, em Kotahena. Foram mortas mais de 300 pessoas e mais de 500 ficaram feridas.

Em Mianmar (Birmânia), os membros do grupo étnico Kachin, cerca de 1,6 milhões, dos quais 90 a 95% são Cristãos (Católicos ou Batistas), sofreram violações, tortura e morte, numa campanha genocida levada a cabo pelo exército de Mianmar.

Na China, para cristãos e outras minorias, o período em análise sofreu uma deterioração acentuada dos direitos humanos. Embora o Vaticano tenha assinado um acordo provisório com a China, permitindo que o regime tenha voz nas nomeações episcopais, a repressão da Igreja Católica aumentou acentuadamente.

No Paquistão, foi registado um aumento alarmante de casos de violência contra grupos religiosos, tanto por atores estatais como por não estatais, muitos deles influenciados pelos Taliban do vizinho Afeganistão. O Governo continua a falhar em enfrentar o crescente clima de intolerância em relação às minorias.

Asia Bibi

Asia Bibi - primeira mulher condenada à morte por blasfémia no Paquistão  é libertada, em maio de 2019
Asia Bibi – primeira mulher condenada à morte por blasfémia no Paquistão é libertada, em maio de 2019

Após uma longa batalha em busca de justiça, Asia Bibi deixou o Paquistão, país onde nasceu, para viajar para o Canadá e reencontrar-se com a sua família. Detida por acusação de blasfémia, em 2009, foi considerada culpada em Novembro de 2010, tendo-se tornado na primeira mulher a ser condenada à morte por enforcamento devido a este crime. Sempre defendeu a sua inocência. A audiência para decidir o seu pedido de recurso foi adiada cinco vezes, até que o Tribunal Superior de Lahore confirmou a pena de morte, em Outubro de 2014.

Quatro anos mais tarde, um recurso apresentado ao Supremo Tribunal do Paquistão anulou a decisão. A sua filha, Eisham Ashiq, disse à Ajuda à Igreja que Sofre: “Este é o momento mais extraordinário. Agradeço a Deus por ter ouvido as nossas orações”.

Mas o pesadelo não estava terminado, pois houve protestos em massa que levaram o Governo a permitir que fosse apresentado um recurso da decisão. Contudo, em Janeiro de 2019, o Supremo Tribunal confirmou finalmente a sua absolvição.

Respostas da comunidade internacional

Nigeria, diocese de Maiduguri, 2015. “BOKO HARAM: Eles podem destruir as nossas estruturas, mas não a nossa fé. A nossa fé é ativa e viva... na perseguição, somos purificados". Declaração do bispo Oliver Dashe Doeme.
Nigeria, diocese de Maiduguri, 2015. “BOKO HARAM: Eles podem destruir as nossas estruturas, mas não a nossa fé. A nossa fé é ativa e viva… na perseguição, somos purificados”. Declaração do bispo Oliver Dashe Doeme.

Em resposta à crescente preocupação de que o Ocidente ignorou amplamente a perseguição Cristã, a comunidade internacional demonstrou um envolvimento sem precedentes com o tema nos últimos dois anos.

Independentemente do que possa resultar das iniciativas da comunidade internacional, estas demorarão a materializar-se.

Diante de constantes ataques, êxodo forçado e possível extinção, os Cristãos não têm tempo para esperar. Seja no Iraque, na Síria ou em qualquer outro lugar, futuros historiadores poderão dizer que foi mais um caso em que se fez muito pouco e demasiado tarde.

Quaisquer que sejam os desafios do futuro, a AIS permanece comprometida em ajudar os Cristãos não apenas a sobreviver à perseguição, mas também a testemunhar a sua fé. O seu testemunho de esperança é fonte de inspiração para todos os que se dedicam a ajudá-los.


Este artigo baseia-se no Relatório sobre os Cristãos oprimidos por causa da sua fé, 2017-19 e contou com a colaboração especial de Felix Lungu. As fotos foram cedidas pela Fundação AIS. O nosso bem haja.

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