Um Herói:

QUAL É A DIFERENÇA ENTRE MENTIR E NÃO DIZER A VERDADE?

Confesso que foi por causa da pergunta que serve de título a este texto – lida numa breve crítica (Francisco Ferreira, Revista do Expresso, de 25 de Fevereiro) que fui ver este filme do realizador iraniano Asghar Farhadi. E não fiquei desiludido, bem pelo contrário.

Um Herói é um intrincado enredo à volta de umas moedas de ouro que pareciam ser a salvação, mas afinal se tornam uma maldição. E nós ficamos sem saber o que realmente aconteceu. É um filme com muitas camadas.

No centro do filme, como personagem principal, temos Rahim que está na prisão por causa de uma dívida ao seu ex-cunhado e fiador, porque foi enganado pelo sócio. Tem dois dias de precária e vai confiante ter com o cunhado que está a trabalhar nas obras de restauro do túmulo de Xerxes. Aquelas escadas que ele sobe no início do filme são a imagem do calvário que ele vai percorrer até acabar por regressar de novo à prisão; do mesmo modo, aquela ‘escavação’ que andam a fazer antecipa os intermináveis interrogatórios a que ele vai ser sujeito. A teia das relações familiares também desempenha um papel relevante no desenrolar do filme.

Um Herói, de Asghar Farhadi, Drama, M/12, FRA, IRÃO, 2021. Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes 2021.
Um Herói, de Asghar Farhadi, Drama, M/12, FRA, IRÃO, 2021. Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes 2021.

Estava tudo encaminhado para correr bem: a sua namorada tinha encontrado uma carteira com algumas moedas de ouro, iam vendê-las e começar a saldar a dívida, se o credor aceitasse. Acontece que quando vão vender as moedas estas já não valem tanto como lhe tinham dito e Rahim decide não as vender. Rahim é um homem honrado e, mesmo querendo muito conseguir a liberdade, a sua consciência vai levá-lo a tentar devolver as moedas à dona. Consegue fazer isso, mas nada vai acontecer como previsto. Rapidamente, ele e os seus vão ficar enredados numa teia feita de meias-verdades e meias mentiras da qual não vai conseguir libertar-se.

Rahim parece honesto e merece uma nova oportunidade, está feliz com a sua nova relação, e a sua namorada também faz tudo para conseguir essa nova felicidade. Mas a desconfiança é um veneno terrível, o ressentimento atrapalha tudo e a inveja ou o ciúme armadilham as relações e as convicções. E as redes sociais são mesmo mortíferas.

“Das malhas familiares aos labirintos da burocracia estatal, ninguém conhece tudo o que está a acontecer (incluindo o espectador), de tal modo que qualquer situação dramática, mesmo a mais anódina, pode transfigurar-se em elemento de um insólito pesadelo − a verdade pode estar enredada numa bizarra coleção de mentiras”, escreveu o crítico do Diário de Notícias, João Lopes.

Estamos no Irão e são o seu sistema judicial e a sua economia, a sua sociedade entre o passado e a modernidade que estão espelhados neste filme. Mas somos, afinal todos nós, com as nossas contradições e os nossos defeitos, as nossas fraquezas e as nossas forças que passamos também por ali.

Como li algures, Asghar Farhadi, a quem interessa sobretudo a honra e a desonra, a reputação de todos os protagonistas, revela na psicologia das personagens a complexidade da vida de todas as pessoas que tentam safar-se com a verdade, sem verdadeiramente mentir.

No final, irreconhecível, Rahim chega à porta da prisão com o filho e a namorada está à sua espera. Ele entra e espera que o chamem. Enquanto espera, a porta que dá para fora permanece longamente aberta. Ele sabe que vai voltar a sair, que alguém esperará por ele. E nós esperamos que esse dia chegue depressa. Afinal, ele é um homem bom que não chegou a ser herói.

Um Herói, de Asghar Farhadi, Drama, M/12, FRA, IRÃO, 2021. Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes 2021.

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