A palavra jornada é usada habitualmente em dois de vários significados possíveis: como caminho e como dia de encontro. Na linguagem cristã, por exemplo, apreciamos muito essa ideia de itinerário acompanhado, de percurso à procura, de peregrinação feita por etapas. Já num âmbito académico ou profissional, por seu turno, a jornada é um encontro, um dia ou dias à volta de um tema ou acontecimento de destaque.
Um encontro a meio do caminho: eis como penso que poderemos considerar a iniciativa que se celebrará nos próximos dias 22, 23 e 24 de outubro: a Jornada Nacional de Luto, Memória e Afirmação da Esperança.
A ideia desta Jornada nasceu entre um grupo de amigos que a foram partilhando e, aos poucos, foi-se alargando a rede que sustenta a proposta. No início do mês de julho foi divulgada aos media a declaração de apresentação e a lista dos (primeiros) 100 subscritores, aos quais se associou mais tarde o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Vale a pena conhecer este grupo de pessoas; entre eles, jovens (ainda) desconhecidos, gente de várias cores, mulheres e homens de diferentes culturas religiosas, imigrantes, novos e velhos, artistas, intelectuais, médicos, juristas, jornalistas, comunicadores, sotaques portugueses de distintos quadrantes. Não se trata de gente mais ou menos importante (sim, algumas pessoas são conhecidas pelo seu contributo nas áreas profissionais e cívicas), mas de um bocadinho do País, diverso e unido.
A declaração que propõe a celebração destas jornadas pode ser lida em https://memoriaeesperanca.pt/. Destaco palavras iniciais que definem o espírito da Jornada: “Ao olhar para a fase pós-pandemia na realidade que nos é mais próxima, não podemos esquecer, não podemos fazer tábua-rasa, da experiência traumática que o último ano representou para centenas de milhares de portugueses que viveram e vivem momentos trágicos. Não podemos nem queremos esquecer as perto de 900 mil pessoas contagiadas […]. Não podemos nem queremos esquecer as mais de 17 mil vítimas mortais […].” O texto prossegue repetindo a ideia de que não queremos nem podemos esquecer também quem esteve sempre disponível nos seus postos de trabalho e quem ficou (ainda) mais sozinho no contexto da pandemia. Os subscritores afirmam que é imperioso fazer o luto, e em particular o luto comunitário, ao mesmo tempo que se insiste na esperança (recordo aqui Os pés na terra de julho de 2019). Trata-se de uma iniciativa sem dono, sem outra motivação que não a de unir o País, na sua diversidade e, assim, na pluralidade de expressões, do luto à esperança.
Conto um pequeníssimo detalhe. Tive oportunidade de estar presente nos primeiros dias após o nascimento deste projeto. As palavras luto, memória e esperança estiveram desde o início no nome da proposta, mas acrescentou-se-lhe afirmação. Creio que são palavras verdadeiramente inspiradoras: afirmação da esperança. Porque é mesmo necessário dizer sim, soletrar estas sílabas, torná-las audíveis aos outros e a nós, declarar e fazê-lo como uma revelação: esperança!
Não havendo um programa oficial, o convite é lançado aos grupos e às comunidades para que (se) preparem e em particular nos dias 22, 23 e 24 de outubro, como referi antes, exprimam do modo que entenderem a sua dor, a sua saudade, a gratidão, a memória dos dias e dos nomes, a esperança no País que há de vir. Haverá iniciativas com maior visibilidade, sem dúvida. Mas todas as palavras e todos os gestos contam, se são genuínos. Não se trata de fazer um concurso de atividades, ou uma competição de iniciativas. Cada um de vós, de nós – a paróquia, a freguesia, o clube recreativo, a malta do skate, o pessoal do bar, as senhoras da ginástica e os amigos do dominó, a escola, a creche, a biblioteca, enfim, aquele grupo a quem estamos ligados e que nos dá o amparo do sentido de pertença –, cada um, dizia, pode organizar um momento de Luto, Memória e Afirmação da Esperança.

Neste ano e meio de pandemia, construímos uma história individual e familiar; passámos de formas diferentes as dificuldades que se nos apresentaram, a experiência de quem se sente mais fortalecido e a experiência de solidão ainda inultrapassada. Somos tão diferentes, vivemos vidas tão contrastantes…
O desafio da Jornada é porventura insólito: sair do nosso bom combate, íntimo e secreto, e colocar em cima da mesa comum as armas e as bagagens que trazemos.
É um encontro a meio do caminho, este. Abracemos a oportunidade com o espírito do encontro a que nos insta o Papa Francisco. Não conhecemos de antemão o traçado, não antecipamos a meta, mas sabemos de outros dias e outros itinerários, que há encontros providenciais, que nos alimentam e alentam.
Espero, com aquela esperança que renova, que em outubro possamos ter essa experiência comunitária e que ela nos sirva verdadeiramente para prosseguir nesta jornada.
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