Um cristianismo místico contemporâneo

De uma maneira ou de outra, com maior ou menor intensidade, formulada com palavras precisas ou não, todos aqueles que se dizem cristãos já foram assaltados por esta interrogação: será que é possível assumir a radicalidade cristã na contemporaneidade? Ou se quisermos, e para dizer de outra maneira, não existirá uma certa oposição entre o mundo contemporâneo e a experiência crista?

E se nos atrevermos a formular esta dúvida a partir da categoria da mística tudo parece ficar mais complicado, já que não se vê com facilidade como se possa ser místico sem alguma atitude de fuga, rutura, ou, pelo menos, de afastamento perante o mundo.

E se na resposta a esta interrogação dissermos que sem contemporaneidade o cristianismo não é mesmo possível e que a fuga do mundo impede a concretização da experiência mística, então, certamente, tudo parece ficar ainda mais confuso e de pernas para o ar.

Serve esta pequena provocação para partilhar ecos de algumas leituras feitas recentemente. Faço referência explícita a duas: a Exortação Apostólica Alegrai-vos e Exultai (a propósito da qual já partilhei algumas impressões no número passado da nossa revista), e ao recente livro de Maria Clara Bingemer, Experiência de Deus na contemporaneidade. Entre o viver e o contar, publicado entre nós pelas Edições Paulinas e que me serve de guia nas linhas que se seguem.

A experiência mística revela-nos a experiência do dom, da entrega e do cuidado do outro

Ao referir-se à experiência mística, que em bom rigor deve ser a marca de toda a experiência cristã, a autora destaca que se trata de uma experiência totalizante, na qual estão integrados todos os aspetos da complexa realidade humana, de tal modo que ela não pode deixar de acontecer dentro da história de vida de cada ser humano. E só no contexto dessa história é que se pode realizar o encontro com Deus.

Na verdade, e ao contrário do que pode parecer à primeira vista, quanto mais próximos e mais íntimos de Deus, mais a experiência mística demonstra a necessidade do contexto histórico e se compromete com a sua própria edificação. Dentro ou fora das instituições religiosas, os místicos ensinam-nos que experimentar o mistério de Deus no meio do mundo acaba por conduzir a uma paixão ardente por esse mesmo mundo e ao compromisso pela sua transformação e redenção.

No meio de uma cultura que parece privilegiar o prazer, o individualismo e o consumismo, a experiência mística revela-nos a experiência do dom, da entrega e do cuidado do outro, sobretudo do mais vulnerável e carente, como dimensões nas quais a condição humana se pode realizar mais plena e consistentemente.

A experiência mística e o compromisso com a justiça

No meio de uma cultura que divide a sociedade em ganhadores e perdedores, que aposta no sucesso a todo o custo e quase que contra os outros, que apresenta os primeiros lugares como os únicos que interessam, na qual vai imperando a violência e se vão gerando cada vez mais vítimas, a experiência mística testemunha o serviço ao outro, como atitude capaz de promover a realização e o sucesso e o compromisso com a justiça, como dinâmica na qual se pode e deve edificar a sociedade.

Os místicos reinventam o quotidiano criando um novo alfabeto

Um menino reza numa mesquita durante o sagrado mês de jejum do Ramadão, em Karachi, Paquistão, 16 de maio de 2018. Os muçulmanos de todo o mundo comemoram o mês sagrado do Ramadão orando durante a noite e abstendo-se de comer, beber e atos sexuais entre o nascer e o pôr do sol. O Ramadão é o nono mês do calendário islâmico e acredita-se que a revelação do primeiro verso do Alcorão foi durante as últimas 10 noites. EPA / SHAHZAIB AKBER.
Um menino reza numa mesquita durante o sagrado mês de jejum do Ramadão, em Karachi, Paquistão, 16 de maio de 2018. Os muçulmanos de todo o mundo comemoram o mês sagrado do Ramadão orando durante a noite e abstendo-se de comer, beber e atos sexuais entre o nascer e o pôr do sol. O Ramadão é o nono mês do calendário islâmico e acredita-se que a revelação do primeiro verso do Alcorão foi durante as últimas 10 noites. EPA / SHAHZAIB AKBER.

No meio das circunstâncias comuns do dia a dia os místicos reinventam o quotidiano, sendo sujeitos ativos da história humana. Falando das coisas humanas e do mundo são capazes de criar um novo alfabeto que fale simultaneamente de Deus e do seu projeto para todos e cada um.

Para se ser cristão não há, então, que fugir do mundo, mesmo dum mundo no qual Deus parece estar ausente. Pelo contrário, só mergulhando cada vez mais no mundo se pode transformar a história a partir da presença do Deus que é amor.

A pergunta que encabeça estas linhas revela-se, pois, inapropriada se não nos conduzir a afirmação de que o cristianismo é simultaneamente místico (experiência profunda de encontro com o Deus de Jesus Cristo) e contemporâneo (aqui, agora, sempre).

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