A memória é um atributo dos seres humanos que, através de complexos processos de seleção, organiza uma narrativa significativa sobre a identidade individual ou de um grupo.
Embora diferentes, as memórias de um só indivíduo, as memórias familiares ou a memória coletiva de uma nação, por exemplo, têm modos de funcionamento semelhantes: a partir do passado, elas conferem um sentido ao presente.
Por isso, dito assim ou de outras formas, sabemos que “a memória é um assunto do presente”.
Esquecer e lembrar, silenciar ou fazer ressurgir, são verbos que demonstram que a memória é dinâmica, é movimento, construindo-se com contributos da História, mas também com histórias que são transmitidas geracionalmente até serem pouco a pouco substituídas por outras mais relevantes para cada momento.
Há uma História do Cristianismo, fruto da investigação e do estudo, disciplina que obedece, como outras, às exigências da ciência, que não é necessariamente património identitário de uma comunidade.
Há também, como o experienciam as comunidades cristãs há dois milénios, um sentido de pertença que nos aproxima de outros indivíduos menos pelos factos do passado e mais por um sentido atual de pertença. Sentir-se parte de uma narrativa vital que nos preenche e nos transcende, no espaço, no tempo e no sentido.
Este fazer parte relaciona-se também com o vivenciar dos mesmos acontecimentos.
Neste sentido, reconhecemos que a dimensão performativa dos rituais cristãos proporciona ao crente uma experiência também espiritual e corpórea da sua fé.
“Fazei isto em memória de mim”. O verbo usado por Jesus na Última Ceia – fazer – conjugado no modo imperativo exige uma ação, não só um ser cristão, mas um agir como cristão (não falo aqui, é evidente, das ações resultantes do envio apostólico). É através do pôr em cena ritualizado que, em cada Eucaristia, os fiéis recordam e revivem (voltando a viver e a tornar vivos) aquele momento e aquela Presença, fazendo-se assim partícipes deste presente.
Falta ainda referir a dimensão evocativa e mnésica de cada palavra, cada gesto, cada objeto. Diante de nós, connosco, a encenação litúrgica lembra o evento original que, por sua vez, dá sentido a essa narrativa, num exercício dialógico entre a memória e o presente. Cada representação da Última Ceia (e de outros acontecimentos da vida de Cristo) faz parte da anamnese milenar que os cristãos trazem de outro tempo para dar sentido a Cristo hoje e à existência de hoje.
Também as procissões religiosas são encenações de forte carga dramática. Aproveito aqui a polissemia da palavra, pensando por um lado na teatralidade da procissão e ao mesmo tempo na representação do sofrimento que existe, por exemplo, nas procissões dos passos, de novo suspensas nesta Páscoa de 2021.

Num mundo que é todo ele performance e espetáculo, dramatização e ritual, que lugar ocupam os rituais litúrgicos? Que lugar ocupam as procissões e os compassos pascais ausentes mais um ano? Esta ausência é real ou é apenas um silêncio contingente que rapidamente será interrompido pelos ruídos compassados dos sapatos nas estradas, pela memória que os indivíduos e as comunidades têm desses andores pesados e lentos? Alguém esquece o encontro do Cristo ajoelhado e de Maria dolorosa?
Quem esteve na Jerusalém de cada terra deste País, quem fez já este caminho reto, quem o viveu na intimidade e ao mesmo tempo acompanhado pelos irmãos, aqueles que escutaram o silêncio dos penitentes e se admiraram com a solenidade “dos anjinhos” de várias gerações, sabem – porque o vivem – que este ano é mesmo só uma pausa, um compasso… de espera.
E a espera também o sabemos – porque o vivemos – é palavra de esperança.
É a Páscoa do Senhor. Aleluia!
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