No dia 15 de maio passado de manhã, o assunto estava no feed do meu Facebook, com a imagem de um jornal online, onde se lia uma lista de nomes de deputados e à frente do nome de uma deputada, entre parêntesis, o adjetivo preta.
A notícia da Agência Lusa sobre a composição da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, assinada pelo jornalista Hugo Godinho, fora reproduzida em diversos sites dos media de referência portugueses. Preta. Uma informação quase burocrática com os nomes dos deputados membros e suplentes da referida Comissão e com aquela palavra. Melhor, com aquele insulto. Foi assim, aliás, que a deputada Romualda Fernandes, o nome a que se seguia o (preta), o sentiu.
Romualda Fernandes (n. 1954) é jurista e tem um longo percurso de serviço público na Guiné-Bissau, de onde é oriunda, e em Portugal. Antes de ser eleita deputada à Assembleia da República pelo Partido Socialista na presente legislatura, desempenhava funções como vogal do Conselho Diretivo do Alto Comissariado para a Imigração. O seu currículo profissional e cívico, nomeadamente como mulher católica, é conhecido, reconhecido e consistente.

É pouco provável que um jornalista de política ou que um leitor atento não conhecesse já Romualda Fernandes. No início da legislatura, foi amplamente noticiada (na imprensa, na rádio e na TV, para além de nos novos media) a eleição de três deputadas negras: além de Romualda Fernandes, também Joacine Katar Moreira (atualmente deputada não-inscrita, mas eleita pelo Livre) e Beatriz Gomes Dias (do Bloco de Esquerda). Portanto, a justificação apresentada pelo autor da notícia de que teria sido um apontamento pessoal para recordar o nome da pessoa, inadvertidamente passado para a notícia final, parece no mínimo duvidosa.
Em qualquer caso, e apesar do texto ter um autor (autor, autoria e autoridade, como sabemos, andam juntos e, já agora, todos trazem consigo responsabilidade), o que importa aqui é pensar no ato e procurar refletir sobre a resposta que podemos dar ao racismo e aos atos racistas.
Numa peça da agência noticiosa do país, uma deputada da nação foi identificada a partir da cor da pele com a palavra preta. Não é irrelevante, creio, o facto de ter acontecido com uma deputada. Não agrava nem alivia em nada o sucedido, mas dá-lhe um contexto que podemos relacionar com a habitual deferência que o cargo recebe. Desta feita, não recebeu. Nem o cargo, nem a pessoa, nem todos nós. Porque o racismo é um assunto de todos os cidadãos.
Houve várias notícias e ecos da situação. Num âmbito institucional, o editor de política da Lusa demitiu-se imediatamente, o presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, e o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, declararam “inaceitável” o modo como tinha sido referida a Deputada, o Partido Socialista e o seu grupo parlamentar repudiaram veementemente o acontecido. No foro mediático, houve artigos de opinião, comentário em espaço humorístico na rádio, ou tomadas de posição pública, por exemplo.
Antes escrevi que a palavra preta era um insulto. É. Não o é no abstrato, claro. Mas pode sê-lo no concreto. É evidente que esta é uma dessas situações.
A palavra preta tem uma história e não, não é normal usá-la nem para apontamento pessoal e menos ainda com o argumento de que escrever preto porque é o contraste de branco. Não é.
Sugiro neste âmbito a leitura do artigo da socióloga Cristina Roldão, “A questão racial no caso da Lusa” (Público, 15-5-2021), e as declarações da linguista Ana Margarida Abrantes à jornalista do Expresso (14-5-2021), Christiana Martins: “as palavras não são neutras – e não são as designações que são problemáticas, mas sim a ligação a essas realidades”. Insisto, nesta realidade, a palavra preta foi um insulto.
Das declarações da Deputada ao Público queria salientar três linhas de reflexão de que não devemos abdicar: a primeira é que se tratou de um insulto racista e que Romualda Fernandes o sentiu como tal; a segunda é a de que existe racismo e preconceito e não podemos ter medo de “chamar as coisas pelos nomes”; finalmente, a ideia de que numa sociedade democrática, o combate contra o racismo é uma tarefa verdadeiramente de todos e não apenas de alguns.
Pensemos nisto. A sério, pensemos mesmo. E tenhamos a bravura para agir: à mesa do jantar em família, nos projetos educativos escolares, nas nossas relações sociais, no jornalismo que consumimos e nos comentários que partilhamos, nos fóruns virtuais ou presenciais da Igreja, etc.
Agir veementemente contra o racismo é uma atitude cívica e humana, é um combate de todos e por todos.
Foto da capa: Romualda Fernandes na Assembleia da República. Foto do Facebook.
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