Um artesanato para a paz

Na mensagem do papa Francisco para esta Quaresma podemos ler que se não esmorecermos a seu tempo colheremos, porque o bem, o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam de uma vez para sempre, mas têm de ser conquistados cada dia.

Bebé da Ucrânia, num campo de refugiados na Moldávia, 9 MAR 2022. Foto EPA/DUMITRU DORU.
Mãe Ucraniana com o seu bebé, num campo de refugiados na Moldávia, 9 MAR 2022. Foto EPA/DUMITRU DORU.

O mesmo se pode e deve dizer acerca da paz, refere a Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) na sua reflexão acerca da mensagem do Papa. A paz é mesmo, não pode nunca deixar de o ser, um compromisso inadiável para todos os que se dizem cristãos. A paz é o critério da autenticidade da experiência cristã, como podemos depreender das Bem Aventuranças: “bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mt 5, 9). E é-o também quando se encontram cristãos nos lados opostos do tabuleiro geopolítico, como está a acontecer nesta guerra a que, como se diz, assistimos em direto.

A este propósito gostaria de partilhar o desconforto que este ‘direto’ muitas vezes provoca em mim. Não me refiro à importância da presença dos meios de comunicação social no terreno. Essa presença, sabemo-lo bem, é indispensável e preciosa, de modo a denunciar, não só, todos os crimes de guerra, mas a ajudar-nos a entender, também, que toda a guerra acaba sempre por ser crime. O meu desconforto não se refere a esse trabalho, mas a outras dimensões que brevemente enuncio, pois acho que as deveríamos ter mais em conta.

Dizemos que assistimos à guerra em direto, dizemos que a guerra está no nosso território e isso é verdade, mas não tenhamos ilusões e não nos deixemos enganar, esse assistir é muitas vezes feito a partir do nosso sofá, no aconchego das nossas casas. As consequências que sofremos são também muito distintas daqueles que estão no terreno e veem o seu país e as suas casas destruídas, as suas famílias divididas, as suas vidas postas em causa. Não digo isto para nos culpabilizar, mas para que não percamos a noção dessa diferença, porque é importante termos essa noção, de modo a podermos verdadeiramente ajudar.

E isso, ainda bem, está a acontecer. A gigantesca onda de refugiados provocou uma outra onda gigantesca de solidariedade. No meio do horror da guerra, vemos uma imensidão de gestos de bondade.

Vamo-nos descobrindo, apesar das diferenças e também por causa delas, como membros de uma única humanidade e, de repente, o sonho enunciado por Francisco na Fratelli Tutti, o sonho que muitos apelidam de utópico, revela como, em certo sentido, precisamos mesmos das utopias para transformar o mundo:

sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.

Não nos cansemos nunca de fazer o bem, diz a mensagem já referida. Não nos cansemos nunca de ser construtores da paz, podemos também afirmar. Para nós crentes, ela é um dom que jamais podemos deixar de pedir a Deus, porque ele é a fonte da verdadeira paz, mas é igualmente uma exigência que implica, da nossa parte, mudança de atitudes e ações concretas.

A paz é verdadeiramente, lembra-nos a CNJP, citando o nº 231 da Fratelli Tutti, um trabalho de artesanato ao qual todos somos convocados:

Existe uma “arquitetura” da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade, cada uma dentro de sua competência, mas há também um “artesanato” da paz que nos envolve a todos.

No caminho de preparação que estamos a fazer para a celebração da Páscoa, o compromisso com a construção da paz deve ser inequívoco. Julgo mesmo que deve ser um dos critérios para aferirmos a verdade desse caminhar.

A identificação de tudo aquilo que nas nossas vidas e nas nossas sociedades é obstáculo à paz, bem como a coragem para a sua remoção são condições favoráveis e necessárias para que a celebração da vitória da vida possa ser agente de transformação.

O desejo de celebrar a Páscoa, em que todas as comunidades cristãs estão envolvidas, não pode querer menos do que isso. Este tempo de Quaresma é também o tempo favorável para vermos e identificarmos tudo o que nas nossas vidas e nas nossas sociedades se configura como obstáculo à paz, de modo a que possa ser removido.

Foto da capa: Aulas de Português, turma de refugiados afegãos. Paróquia de Santo António dos Olivais, Coimbra 24 MAR 2022. Foto MSA.

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