A 8 de agosto de 2020, com 92 anos, D. Pedro Casaldáliga fechou o seu tempo entre nós. 92 anos que marcaram profundamente a vida da Igreja na Amazónia.
Nascido na Catalunha e tendo ingressado nos Missionários Claretianos, fez a sua formação humana e teológica e preparou-se para ser sal e fermento dum espaço esquecido do Brasil. Ordenado sacerdote em 1952, passou por diversas experiências pastorais antes de partir: professor, assistente nacional dos Cursilhos de Cristandade, diretor de um pequeno jornal e de um colégio católico…
Depois de uma breve experiência na Guiné espanhola, a África surge como local do seu sonho pastoral, mas a vida troca-lhe as voltas e é designado para S. Félix de Araguaia.
Constrói uma pequena cabana junto ao rio e mergulha na realidade dolorosa daquele povo. Apercebe-se dos dramas dos espoliados das suas terras pelos fazendeiros e garimpeiros que, com os seus jagunços, iam fazendo daquela terra uma terra queimada, esgotando até ao limite as capacidades económicas dessa imensa região.
Quando é nomeado bispo pelo Papa Paulo VI já está definida a sua vocação de dádiva e entrega ao seu povo na transmissão do evangelho numa fidelidade radical às linhas traçadas pelo Vaticano II.
Ordenado bispo em 1971 para a Prelazia de São Félix do Araguaia, Dom Pedro decidiu não usar mitra, nem báculo, afirmou a sua opção pelos pobres, a defesa dos povos indígenas e o compromisso com os lavradores e os sem terra. Assim lemos a sua explicação, como consta em seu diário e no convite lembrança da sua ordenação:
Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e ao povo desta terra. Não terás outro escudo senão a força da Esperança e a Liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outra luva que o serviço do Amor.
Seu lema de bispo será poema feito vida:
Não ter nada
não levar nada
não poder nada
e de passagem,
não matar nada
não calar nada.
Somente o Evangelho
como faca afiada
e o pranto e o riso no olhar.
E a mão estendida
e apertada
e a vida, a cavalo, dada.
E este sol e estes rios
e esta terra comprada
como testemunhas
da ressurreição
já estalada.
E mais nada.
O evangelho tornava-se carne na pessoa de D. Pedro. Na altura da sua ordenação episcopal divulga um notável documento sobre a realidade amazónica: Uma Igreja da Amazónia em conflito com o latifúndio e a marginalização social. O texto ficou conhecido nacional e internacionalmente e marcou o seu perfil missionário como porta-voz de índios e agricultores, como destaca Antônio Canuto:
O grande diferencial foi dar visibilidade a uma situação amazónica que praticamente era invisível. Ele mostrou para a Igreja e para a sociedade uma realidade que no restante do Brasil não se conhecia. Ele foi assumindo diretamente a defesa das pessoas mais atingidas pela violência daquela região, que eram os índios, os posseiros e os peões.
Naturalmente que a perseguição, em tempo de ditadura, não se fez esperar. Numa ação de protesto de D. Pedro Casaldáliga e do padre jesuíta João Bosco Burnier, numa delegacia, para defender duas mulheres que estavam a ser torturadas, o disparo assassino de um policial atingiu mortalmente o Padre João Bosco. Naturalmente que a bala era para D. Pedro.
Por quatro vezes o Regime Militar tentou extraditar D. Pedro do Brasil. Numa das vezes, a resposta do Vaticano foi muito clara:
O papa (Paulo VI) disse que tocar em Pedro, era tocar em Paulo.
No tempo de João Paulo II foi-lhe imposto o dever de um silêncio obsequioso. Mas não se cala a profecia. E a sua obra, a sua poesia e mística continuam presentes inspirando os novos olhares sobre a “querida Amazónia”.
D. Pedro Casaldáliga fica como luzeiro a iluminar os caminhos do Vaticano II. O seu funeral é em si mesmo um forte testemunho. Descalço no seu ataúde ele quis ficar junto ao rio no cemitério anónimo dos marginais e da gente sem importância. Para epitáfio as primeiras estrofes de um seu poema:
Para descansar
eu quero só
esta cruz de pau
com chuva e sol,
estes sete palmos
e a Ressurreição!
Mas para viver
eu já quero ter
a parte que me cabe
no latifúndio seu:
que a terra não é sua,
seu doutor Ninguém!…

Homem de causas, profeta e místico, a sua visão não se fica pelas ramas das coisas, mas mergulha na complexidade das vidas e do mundo e na sua proximidade com Francisco de Assis.
Compadre Francisco, como vais de glória?
E a comadre Clara e a irmandade toda?
Nós, aqui na Terra, vamos mal vivendo,
que a cobiça é grande e o amor pequeno.
O Amor divino é mui pouco amado
e é flor de uma noite o amor humano.
Metade do mundo definha de fome
e a outra metade de medo da morte.
A sábia loucura do santo Evangelho
tem poucos alunos que a levem a sério.
Senhora Pobreza, perfeita alegria,
andam mais nos livros que nas nossas vidas.
Há muitos caminhos que levam a Roma;
Belém e o Calvário saíram de rota.
Nossa Madre Igreja melhorou de modo,
mas tem muita cúria e carisma pouco.
Frades e conventos criaram vergonha,
mas é mais no jeito que por via nova.
Muitos tecnocratas e poucos poetas.
Muitos doutrinários e menos profetas.
Armas e aparelhos, trustes e escritórios,
planejam a história, manejam os povos.
A mãe natureza chora, poluída
no ar e nas águas, nos céus e nas minas.
Pássaros e flores morrem de amargura,
e os lobos do espanto ganharam as ruas.
Murchou o estandarte da antiga arrogância,
são de ódio e lucro as nossas cruzadas.
Sucedem-se as guerras e os tratados sobram;
sangue por petróleo os impérios trocam.
O mundo é tão velho que, para ser novo,
compadre Francisco, só fazendo outro…
Quando Jesus Cristo e Nossa Senhora
venham dar um jeito nesta terra nossa,
compadre Francisco, tu faz uma força,
e a comadre Clara e a irmandade toda.
D. Pedro Casaldáliga
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