Tudo é Graça

Aqui há uns seis anos, li deslumbrado o livro Tudo é Graça – A revolução, de Dorothy Day. Pois foi desse livro que me lembrei imediatamente ao ver este despojado e muito sóbrio filme Perante o teu Rosto (daí a razão do título deste texto).

De facto, logo numa das primeiras cenas, como que ouvimos a protagonista rezar: “Tudo o que vejo diante de mim é graça”. Só mais tarde compreenderemos o alcance destas palavras saídas do coração daquela ‘mulher abençoada’, como alguém lhe dirá.

A mulher é Sangok, uma atriz que há muito tempo foi viver para os Estados Unidos e que regressa agora à Coreia. No início, pressentimos que há algo de secreto que ela guarda, mas só saberemos mais tarde o que é. O filme, que se passa durante vinte e quatro horas, começa e acaba no mesmo lugar: no apartamento da irmã, a olhá-la enquanto ela dorme, com uns gestos tímidos de quem deseja que ela acorde para falar. Talvez a ver se é capaz de contar o segredo.

Dangsin-eolgul-apeseo, Perante o teu rosto, de Hong Sang-soo, Drama, M/14, Coreia do Sul, 2021.

Perante o teu Rosto é um filme espiritual, com a presença permanente da transcendência, durante o qual a protagonista vai fazer um caminho sereno, como quem se vai despedindo, agradecida, da vida que viveu, apesar do medo, que também está presente. Um momento muito significativo é quando ela aproveita o atraso do almoço para ir visitar a antiga casa onde morou, e se demora no pátio a conversar e a fumar com a jovem a quem a casa pertence agora. E mais significativo ainda é o abraço à menina, como quem se despede dos seus tempos de criança ali vividos.

Mas o grande momento revelador vem a seguir. O almoço é com um realizador de cinema que quer muito fazer um filme com ela, de tal modo ficou deslumbrado com os seus filmes antigos. E a mesa, no cinema de Hong Sang-Soo, é sempre lugar de revelação, também por culpa do muito álcool bebido. Neste filme então, é mesmo muito longo o almoço, quase parece que se passa ali mais de metade do filme. Começam muito timidamente, quase desconfiados, a balbuciar. No início, ainda está um assistente do realizador, mas depressa ficam apenas eles os dois. É quando ela vai dizer que não poderá fazer o filme – demoraria demasiado tempo – porque ela vai morrer em breve. Era esse o segredo.

O que se passa a seguir é uma cena muito bonita marcada pela urgência, e que os leva a prometer que vão, pelo menos, fazer uma viagem de três dias e fazer o filme possível. Ela pode arriscar tudo, tal é a sua serenidade. Mas ele não, como se verá, quase no fim, na mensagem que lhe envia, de manhã, e que a faz rir com vontade, como se já adivinhasse o desfecho.

É durante esse almoço que ela diz outra frase que não esqueci: “Tenho esta crença: acredito que o paraíso se esconde diante dos nossos olhos”. No rosto dos outros que, afinal, conhecemos tão pouco. Perante o teu rosto.

Este filme, depurado e simples, aparentemente pouco cuidado, feito de monólogos interiores e diálogos demorados, é, afinal, uma afirmação da intimidade, da proximidade, do desejo de estar acompanhado. Por isso o filme começa e acaba com ela a contemplar o rosto da irmã.

É uma bela meditação sobre a vida, que vale sempre a pena. Mesmo que uma nódoa suje o vestido ou a chuva caia a jorros, de repente. Porque tudo é graça. Nem que seja o prazer de um cigarro fumado devagar…

Dangsin-eolgul-apeseo, Perante o teu rosto, de Hong Sang-soo, Drama, M/14, Coreia do Sul, 2021.

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