UM CONVITE A SAIR DE SI E A IR AO ENCONTRO DOS OUTROS
A propósito de um outro – belíssimo – filme A Metamorfose dos Pássaros, da realizadora portuguesa Catarina Vasconcelos, alguém escreveu que ‘a família é lugar de conforto, mas também lugar de confronto’. Creio que pode ser uma pista interessante para olhar o último filme de Nanni Moretti, Três Andares. Trata-se, de facto, do drama (destino ou vida) de quatro famílias que acabam tragicamente entrelaçadas. Vivem todas no mesmo prédio e poderiam ter uma vida boa, devido à situação económica e profissional. Mas o filme é precisamente sobre a sua (nossa) dificuldade de viver juntos.
Disse o próprio realizador:
Aquele prédio simboliza a nossa tendência para viver vidas isoladas, longe de uma comunidade humana que pensávamos já não existir. Mas, a experiência incrível da pandemia provou-nos o contrário. É como se ela tivesse desmascarado uma grande mentira: pensarmos que podíamos passar sem a colectividade. O filme foi rodado antes, mas é como se eu tivesse antecipado o que iria passar-se. É um convite a sair de si mesmo e ir ao encontro do outro, o que parece cada vez mais necessário, não apenas na vida privada mas também na vida pública.
la-croix.com – Culture – 11/11
Adaptado de um romance do autor israelita Eshkol Nevo, Três Andares começa de maneira ‘violenta’: um condutor (veremos depois que é um jovem), manifestamente embriagado, entra literalmente com o carro por uma casa dentro, depois de ter atropelado mortalmente uma mulher. É a partir desta abertura inicial que o filme se vai desenrolar. Quando os habitantes do prédio saem para ver o sucedido, as suas histórias começam a entrelaçar-se. O jovem é o filho de uma das famílias que moram no prédio, um casal de magistrados, que irá recusar-se a ajudar o filho. Ele acabará por ir para a prisão, mas isso deixará feridas na família difíceis de sarar. Outra das famílias tem uma filha pequena que, às vezes, por necessidade, a deixa nuns vizinhos já reformados. Mas o pai, depois de um incidente, passa a viver cheio de medos, transtornado, porque não lhe sai da cabeça que o seu vizinho idoso pode ter abusado da filha. Apesar da serenidade da esposa, aquela angústia vai complicar-lhe a vida. Monica, outra das moradoras, é a primeira a sair do prédio, sozinha e já com as dores do parto. É casada, mas o marido por causa do trabalho está quase sempre ausente e ela lida mal com essa solidão. Vive apavorada e ansiosa com medo de acabar louca, como a sua mãe.

Três Andares é assim um ‘filme coral’ que nos faz acompanhar todos estes acontecimentos dessas famílias, durante dez anos, mostrando-nos as escolhas de cada um e as suas consequências. Intransigência, desconfiança, egoísmo, medo, culpabilidade são alguns dos sentimentos vividos por cada um, por cada família, mas também pela própria sociedade. Disse Nanni Moretti: “Procurei explorar a sua humanidade e as suas fragilidades nas suas relações com os outros, compreender as suas razões para agir assim, sem as julgar”. (ibidem)
Mas o realizador não se deixa enredar nem ficar no fatalismo ou no pessimismo. O filme acaba com a possibilidade da esperança e da redenção, com a luz a brilhar, se pensarmos nomeadamente em Dora, a mãe do jovem Andrea, que faz um grande caminho de mudança. E se pensarmos também naquela cena do baile que invade a rua e simboliza a irrupção do mundo exterior. No meio de um filme tão austero e dramático, aquele sinal de alegria e de festa é um convite a ‘não ficarmos encerrados nos nossos três andares’.
Tre Piani | Três Andares, de Nanni Moretti, Drama, Comédia, M/12, ITA/FRA,2021.
Estreia no festival de Cannes.
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