Tenho medo do teu julgamento

Artigo publicado no messaggero di sant’Antonio, abril 2023
Ilustrações de Elisabetta Benfatto, messaggero di sant’Antonio


O medo do julgamento dos outros é uma das correntes
que nos pode aprisionar ao longo da vida,
impedindo-nos de dar o melhor de nós mesmos.
O que é o medo do julgamento senão o medo de não sermos aceites
por aquilo que somos, de sermos rejeitados e não sermos amados?

Podemos ter medo do que mais desejamos e pelo qual tanto ansiamos? A liberdade é uma das maiores aspirações do ser humano, porque tem a ver com a possibilidade de nos realizarmos, de nos tornarmos autónomos, de escolhermos quem queremos ser e como queremos viver. Então, como é possível ter medo da liberdade?

A liberdade obriga-nos a escolher e a assumir a responsabilidade pelas nossas ações e nem sempre gostamos disso. Preferimos iludir-nos com a ideia de que não somos assim tão livres, de que os nossos pais nos condicionaram, de que aquela doença nos limitou, de que tal crise nos fez vacilar e de que esse fracasso nos enfraqueceu e nos tornou impotentes. Erich Fromm escrevia com grande sagacidade num pequeno, mas poderoso, livro intitulado Medo da Liberdade: “O homem pensa querer a liberdade, mas, na realidade, tem muito medo dela, porque a liberdade obriga-o a tomar decisões e as decisões comportam riscos”.

Há já algumas décadas que muitos filósofos e cientistas põem em questão se os homens são realmente livres. De vez em quando, alguma forma de determinismo, filosófico ou científico, espreita no horizonte da cultura, insinuando no coração do homem que, por mais que queiramos, não somos verdadeiramente livres, mas somos apenas o produto do nosso inconsciente, do ambiente em que crescemos e da atividade neuronal dos nossos cérebros.

No entanto, apesar dos inevitáveis e incontestáveis condicionamentos, “o homem está condenado à liberdade” (Sartre) e esta é a condição da nossa frágil e maravilhosa humanidade. Somos mais do que aquilo que a história nos deu: somos o que escolhemos ser. O homem não é redutível a uma marioneta, manobrado por sabe-se lá que destino sádico e imperscrutável que nos alinearia a todos, conformados e obedientes à ditadura do pensamento único. O homem é mais do que uma fórmula matemática e a sua mente é mais do que um simples produto de um computador humano. O homem é muito mais e é precisamente o mistério insondável da sua liberdade que o torna único.

Numa das mais belas páginas do seu livro, O código da alma, o psicanalista James Hillman adverte:

Se eu aceitar a ideia de ser o resultado de um jogo imperceptível entre forças hereditárias e forças sociais, fico reduzido a um mero resultado. Quanto mais a minha vida for explicada com base em algo que já está nos meus cromossomas, em algo que os meus pais fizeram ou deixaram de fazer, à luz dos meus primeiros anos, agora longínquos, tanto mais a minha biografia será a história de uma vítima. A vida que vivo será o roteiro escrito pelo meu código genético, pela herança ancestral, por eventos traumáticos, por comportamentos inconscientes dos meus pais, por acidentes sociais.

Se não quisermos que a nossa vida seja o argumento escrito pelo destino ou uma biografia de uma vítima, temos de aceitar o risco da liberdade.

Liberdade que se apresenta sempre como um drama. Os existencialistas desde Sartre a Camus entenderam bem isso, tal como Dostoievski, que afirma na Lenda do Grande Inquisidor, no romance que mais influenciou a minha vida, Os Irmãos Karamazov: “Nada é, para o homem e para a sociedade humana, mais insuportável do que a liberdade”.

Então, será que os homens preferem ser escravos? Alguns psicólogos contemporâneos, incluindo eu, falam dos grilhões dos seres livres. Na essência somos livres, mas por vezes gostamos de nos acorrentar. O medo do julgamento dos outros, por exemplo, é uma corrente que nos pode aprisionar toda a vida, impedindo-nos de dar o melhor de nós próprios.

O que é o medo do julgamento senão o medo de não sermos aceites por aquilo que somos?

O medo do julgamento é, basicamente, o medo de ser rejeitado, de não ser amado, de não ser reconhecido por aquilo que se é realmente. Por vezes, preferimos abdicar de uma parte da nossa liberdade para nos conformarmos com a vontade dos outros; para sermos aceites, estamos dispostos a ceder, mesmo à custa da perda da dignidade e do respeito por nós próprios. Todos queremos ser aceites e apreciados: este é um desejo que nos une e que, em certa medida, favoreceu a nossa evolução como espécie.

Mas as confirmações externas do nosso valor nunca serão suficientes: o que os outros pensarão de mim? Será que valho alguma coisa? Está certo o que fiz? Gostaram de mim? Por mais que nos esforcemos, nunca seremos suficientemente bonitos, inteligentes, bons e brilhantes como pais, como marido ou mulher, como estudantes. Nunca seremos suficientemente…

A liberdade interpela a nossa vida, obriga-nos a responder nas dobras das nossas escolhas e do nosso agir, apela inevitavelmente à responsabilidade. Como lidar com toda esta liberdade? Como a utilizamos? E como podemos libertar-nos das amarras invisíveis que nos impedem de voar, de sonhar e nos fecham em nós próprios?

A liberdade é plurifacetada; há várias formas de a viver e de a assumir. Existe a liberdade de se expressar, de viajar, de escolher o emprego que queremos, de votar, de conviver com quem quisermos. Depois, há a liberdade de não sermos escravos de uma dependência ou de laços humanos que nos aprisionam e não nos deixam crescer, não nos dão espaço para nos realizarmos plenamente. Finalmente, há uma liberdade “para”, que é a mais difícil porque exige responsabilidade.

Para quem ou o porquê viver?

Um dos meus mestres, Viktor Frankl, o pai da logoterapia, concebida nos campos de concentração de Dachau e de Auschwitz, gostava de repetir que, além de erguer a estátua da Liberdade na Costa Leste, em Nova Iorque, os americanos deviam também colocar a estátua da Responsabilidade na Costa Oeste, em São Francisco, porque a liberdade sem a irmã responsabilidade é perigosa.

A escravidão é uma corrente mental, o medo do julgamento escraviza as pessoas e, enquanto não escolhermos viver de acordo com o nosso desejo, a escravidão manter-nos-á como reféns. O medo do julgamento dos outros é, acima de tudo, o medo do confronto, o medo de não estar à altura. Mas perguntemo-nos: devemos estar à altura de quem, senão do nosso desejo? E o desejo, que não se confunde com os quereres ou os caprichos passageiros do nosso coração inquieto, é o que torna viva a nossa vida. É o que nos torna plenamente vivos e não sobreviventes.

Perante o medo constante, subtil e evocativo de nunca valer o suficiente, ressoam em mim as palavras, consoladoras e firmes, de Deus ao seu povo eleito:

Eis o que diz o Senhor, o que te criou, Jacob, o que te formou, Israel: Nada temas, porque Eu te resgatei e te chamei pelo teu nome; tu és meu. Se tiveres de atravessar as águas, estarei contigo e os rios não te submergirão. Se caminhares pelo fogo, não te queimarás e as chamas não te consumirão. Porque Eu, o Senhor, sou o teu Deus; Eu, o Santo de Israel, sou o teu salvador… porque és precioso aos meus olhos, porque te estimo e te amo.

Isaías 43, 1-4
Tenho medo do teu julgamento, Ilustração de
Elisabetta Benfatto.

Temos medo da liberdade
e da responsabilidade
e, por isso,
preferimos sufocar
atrás das grades
que nós mesmos construímos.

Franz Kafka

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