#TeamKeletela

Mostrei à Clara a notícia no computador, acompanhada pela fotografia que ilustra esta página: “Chega aqui, filha. Olha, o Farid não foi selecionado para os Jogos Olímpicos, mas o Dorian foi”. A Clara, que estava a dançar em cima da carpete da sala e conhece o percurso de Farid Walizadeh, aproximou-se ofegante do ecrã, disse
− “Ah! É giro. Tem mesmo cara de português!” − e voltou ao seu baile à frente da TV.

Não lhe perguntei o que era “cara de português” mas pareceu-me bonita a ideia de a minha filha achar que um rapaz negro, com pequenas rastas no topo da cabeça e um sorriso aberto, seja uma cara de português.

Dorian Keletela

Dorian Keletela nasceu no Congo em 1999. Do conforto do nosso Norte Global nem sempre detemos o olhar com detalhe nos países do hemisfério Sul, que conhecemos superficialmente, com muitas dúvidas sobre a geografia e a vida real em lugares tão distantes da nossa geografia e até da nossa empatia. O Congo e o seu regime de opressão ficam muito longe; bem mais longe do que os quilómetros e os anos que o órfão que aos 8 anos saiu da sua terra teve de galgar até entrar em Portugal, em 2016, aos 17 anos.

Escrevo entrar num sentido muito burocrático, porque chegar é o final do caminho, e para as pessoas refugiadas a chegada é um processo e não um momento.

Em Portugal, o jovem Keletela, interessado no atletismo, começou a treinar corrida de velocidade com a equipa do Sporting. Nem os seus “pés de pato”, “às dez para as duas” (que faziam moça aos joelhos e que algum trabalho deram aos médicos e preparadores físicos) o impediram de correr cada vez mais rápido e concentrado para as diferentes metas.

Dorian Keletela esteve como atleta convidado aos Europeus de Atletismo de Pista Coberta na Polónia, realizados de 4 a 7 de março de 2021. Num momento de muitas restrições nas viagens aéreas, Dorian Keletela dormiu pouco por causa dos voos de ligação e dos testes Covid-19.

Passou as maiores peripécias (e muitos nervos que nada tinham que ver com o desporto) para competir durante pouco menos de sete segundos. Na pista azul de Torun, com uma camisola a condizer, mas pelo menos um número abaixo do seu, Dorian Keletela foi o último atleta a cortar a meta da sua eliminatória. O seu tempo foi o 61.º entre os 63 tempos validados. Uma participação sem história.

Só que não. Só que não, como costumam dizer os jovens.

Não, não é verdade que a participação de Dorian Keletela nos europeus de pista coberta não tenha tido história e o jornalista da Visão, Rui Tavares Guedes, viu-o bem. Viu, como o título da sua crónica, “A medalha escondida de Dorian Keletela” (11-3-2021).

Keletela é um atleta para quem apenas a presença nos campeonatos realizados em Torun deve ser já considerada um feito extraordinário e, acima de tudo, um exemplo para o País. Dorian Keletela não ganhou medalhas, mas foi o único atleta entre os melhores do continente europeu que, sem ter país, teve o direito a representar a equipa de Refugiados e, com isso, lutar por um lugar nos Jogos Olímpicos. Não vestiu as cores de Portugal, mas ganhou o direito a poder competir, graças ao apoio, desinteressado, de uma série de pessoas e de instituições […].

Rui Tavares Guedes

Uma das instituições que apoia o velocista Dorian Keletela e o pugilista Farid Walizadeh (n. Afeganistão, 1997) é o Comité Olímpico de Portugal, no âmbito de um programa com um título inspirador: Viver o desporto – abraçar o futuro. Keletela e Walizadeh treinam há anos com os braços prontos a abraçar o futuro que está em Tóquio. No mês passado, Keletela foi um dos 29 atletas refugiados que treinam em vários países do mundo a ser escolhido para entrar no estádio olímpico atrás da delegação da Grécia, guiados pelo branco com os anéis coloridos da bandeira olímpica (a primeira equipa olímpica de refugiados competiu nos Jogos do Rio, em 2016).

Com um corte de cabelo estreado para agosto no Japão, Keletela diz à jornalista Joana Oliveira e aos leitores da revista Visão: “Não fiquei nada surpreendido com o meu apuramento. Treinei muito para esse objetivo” (17-6-2021, pp. 78-79).

Nem sempre o desejo e o esforço são suficientes para alcançar um objetivo. Para Farid Walizadeh, cuja história é igualmente de superação e coragem, de sorte e compromisso, o futuro está agora em Paris, 2024. O boxe é um desporto com mais perigos reais, que exige uma preparação e maturidade bem diferentes.

Quem sabe, daqui a 3 anos, quando chegar à capital francesa, Walizadeh já leve, ao lado das luvas, o diploma de licenciado em arquitetura, curso que frequenta atualmente.

Por agora, em mais este verão pandémico global, olhemos para a pista de Tóquio, para as bancadas praticamente vazias, a exímia organização japonesa, as cores das bandeiras, abracemos o sonho olímpico da modernidade centrado nos valores da excelência, amizade e respeito.

Para que haja palmas, medalhas e flores, para que se ouça o hino e os olhos se elevem para a bandeira, para que haja alegria e glória, são precisas muitas vitórias sem pódio, muitas lutas íntimas, muitas dores inconfessadas, muitos recordes pessoais e secretos.

Keletela está na equipa olímpica de refugiados. Nós somos #TeamKeletela, equipa Keletela; o atleta com cara de português, para quem o presente se faz, dez segundos de cada vez.

Foto da capa: Dorian Keletela, velocista leonino, natural do Congo, integra a Equipa Olímpica de Refugiados.

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