Ser pontífice

No mês passado, uma querida amiga pediu-me para fazer uma intervenção sobre Construir pontes humanas, no âmbito da Academia de Líderes Ubuntu, no Agrupamento de Escolas da Batalha.

Pedi um retrato dos alunos, um enquadramento acerca do espírito da sessão e seu contexto na semana de formação. Na volta do correio vieram todas as informações que tinha pedido, e ainda mais: “O tema deste dia é: ser pontífice. Esta palavra, do latim pontifex, significa construtor de pontes (pons + facere)”.

Nunca tinha pensado no significado desta palavra, confesso. Quando ouço ou leio a expressão “sumo pontífice”, penso mais na anedota do que no significado profundo deste título.
[Bom, a anedota é relativamente má (sim, estou a escrever sorrindo com a ironia, mas quem nunca riu com uma piada mazinha que me atire a primeira pedra): “Sabes qual é a bebida preferida do Papa?” “Não, não sei.” “É o sumo pontífice.” Retomemos o nosso texto.]

O sumo pontífice é o maior, o máximo construtor de pontes. Com ou sem hierarquias, todos podemos ser construtores dessas pontes humanas sobre as quais me pediram para falar.

Quando ouvi “pontes humanas”, confesso que o primeiro em que pensei foi naquele movimento da ginástica que, quando eu era criança, era um dos grandes desafios de fortaleza e flexibilidade entre os amigos, juntamente com a roda, a cambalhota para trás e o pino. A ponte, neste caso a da ginástica, é ela também metafórica, uma espécie de desenho corporal dos arcos das pontes romanas do nosso imaginário.

E esta é uma das ideias-chave: pensarmos nas pontes invocando a nossa imaginação. Usar a imaginação e metáforas não significa deixarmos de ser objetivos e claros.

Há uma certa beleza no modo como, na engenharia civil, se classificam as pontes, viadutos e túneis: obras de arte. É o ser humano deslumbrado com a sua inteligência e criatividade, sabendo, porém, que não se trata apenas da excelência da técnica.

Quaisquer pontes, de engenharia civil ou metafóricas, podem ser vistas como obras de arte, uma vez que são sinal de aproximação e de união. Que são sinal de superação do vazio ou de um obstáculo, de superação da solidão e da lonjura.

Que formas podem ter as pontes humanas? Falámos de algumas “pontes” neste espaço do Mensageiro: a forma das galinhas da ACEAG no Gurué, em Moçambique (cf. novembro 2021), a forma do teto que pode abrigar um estrangeiro que procura refúgio (cf. março 2019), ou ainda a forma de uma escola possível/impossível (cf. julho e setembro de 2020).

São apenas exemplos e invocam a linguagem da imaginação tão necessária. Necessária para interpretar o mundo, mas também para o saber construir. Juntos, passo a passo, linha a linha: em cada lugar a que pertencemos ou onde estamos de passagem. Devemos soltar-nos das amarras da utilidade imediata e das exigências da tecnologia, e recentrar o nosso olhar no alto, no longe, no profundo. Onde há estrelas, ou campos, ou jardins submarinos. Lembram-se dos livros de histórias maravilhosas da infância ou lembram-se dos relatos de aventuras do avô e da avó?
Somos chamados a ser pontífices. Construtores de pontes com formas inusitadas, fazedores de novas vias por onde hão de circular objetos e ideias, alimentos e livros, por onde hão de circular pessoas.

Façamo-lo com imaginação e coragem.

Ponte sobre o Tejo. Foto MSA 2018.
Ponte sobre o Tejo. Foto MSA 2018.

Sobra a Construção de Obras Duradouras

Quanto tempo
Duram as obras? Tanto
Quanto o preciso pra ficarem prontas.
Pois enquanto dão que fazer
Não ruem.

Convidando ao esforço
Compensando a participação
A sua essência é duradoura enquanto
Convidam e compensam.

As úteis
Pedem homens
As artísticas
Têm lugar pra a arte
As sábias
Pedem sabedoria
As destinadas à perfeição
Mostram lacunas
As que duram muito
Estão sempre pra cair
As planeadas verdadeiramente em grande
Estão por acabar.

Incompletas ainda
Como o muro à espera da hera
(Esse esteve um dia inacabado
Há muito tempo, antes de vir a hera, nu!)
Insustentável ainda
Como a máquina que se usa
Embora já não chegue
Mas promete outra melhor.
Assim terá de construir-se
A obra pra durar como
A máquina cheia de defeitos.

Tradução de Paulo Quintela
Bertolt Brecht

Foto da capa: Clube de Ginástica Acrobática do Colégio Rainha Santa Isabel, Coimbra. Foto MSA 2019.

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