Sequência da Páscoa: uma das mais belas histórias do mundo

Este é o título de um brevíssimo texto de Marguerite Yourcenar, incluído na colectânea O Tempo Esse Grande Escultor. Começa assim:

Deixo por momentos ao menos as cerimónias e os ritos da mais santa das semanas cristãs e tento extrair dos textos sagrados que se lêem mas nem sempre se ouvem, na igreja, as partes que nos impressionariam se as encontrássemos em Dostoievski ou Tolstoi, ou em qualquer biografia ou reportagem de um grande homem ou de uma grande vítima. Em suma, o desenrolar de uma das mais belas histórias do mundo.

Porque estamos em tempo de Páscoa e porque temos ainda viva diante dos olhos a profética peregrinação do papa Francisco ao Iraque, resolvi escrever sobre um filme profundamente pascal e atual: Dos Homens e dos Deuses.

Dos Homens e dos Deuses, Xavier Beauvois, Drama, M/12, França, 2020.
Dos Homens e dos Deuses, Xavier Beauvois, Drama, M/12, França, 2020.

1. O filme, realizado por Xavier Beauvois, parte da história verídica do martírio de sete monges trapistas da Ordem Cisterciense da Estrita Observância, sequestrados e mortos, no Mosteiro de Tibhirine, na Argélia, em 1996. Deu também origem a um livro, prefaciado pelo papa Francisco, que recolhe testemunhos sobre os frutos da mensagem de paz e de convivência entre o cristianismo e o islão postos em prática pelos monges.

2. Em 27 de Janeiro de 2018, o papa Francisco reconheceu o martírio desses monges.

Vinte anos após a sua morte, somos convidados a ser sinais de simplicidade e de misericórdia, no exercício quotidiano do dom de si, a exemplo de Cristo. Não haverá outro modo de combater o mal que tece a sua teia no nosso mundo.

Continua a ser, como pudemos ver na ‘teimosia’ do papa em manter a sua ‘arriscada’ ida ao Iraque, uma necessidade maior deste mundo trazer ao de cima e à luz os pequeninos sinais de fraternidade e a alegria que essa comunhão é capaz de gerar.

3. O filme é uma magnífica história de amor, pela entrega daqueles monges a Deus na sua vida regrada e simples, nos seus trabalhos e contacto com a natureza, na sua liturgia, nas suas tensões e procura da luz que os guie nos caminhos. Lembro-me bem daquela vela sempre acesa, no meio da mesa e das discussões, como quem sabe que há Alguém capaz de nos levar a ultrapassar os inevitáveis conflitos. Para eles, o mais difícil foi tomar a decisão de ficar ou partir daquele Mosteiro de portas sempre abertas para os monges saírem e os vizinhos entrarem, numa convivência natural e tecida de harmonia. Como devia ser.

4. Neste olhar pascal sobressai a ‘última ceia’, acompanhada pela música pungente do Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, densa e demorada em cada rosto, anunciadora do que aconteceria depois: o ataque ao Mosteiro e o assassinato dos sete monges. Aqueles monges, cada um com as suas dúvidas e lutas interiores, viveram na carne aquela entrega que tantas vezes celebraram na mesa da Eucaristia.

5. “Uma das mais belas histórias do mundo termina com os reflexos de uma Presença, bastante semelhante a nuvens que o Sol já posto ainda ilumina”, escreve ainda Yourcenar.

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