Esta é a mesa da nossa comunhão,
José Augusto Mourão
o pão, o vinho e a memória
que cada um transporta.
Esta é a mesa do nosso conhecimento,
as bodas do nosso advir e da nossa páscoa:
o corpo de Deus ao nosso corpo dado.
Afirmar a Eucaristia como eixo sacramental da saudade implica necessariamente dois movimentos de análise ou reflexão teológica: por um lado, trata-se de ver em que medida é ela entendida pelo corpus theologicum cristão. Ou seja, é ela própria teologalmente articuladora de sentido? Por outro lado, importa perguntar se essa axialidade ou centralidade é teologicamente articulável com a saudade.
É importante reconhecer, primeiramente, que, no complexo sacramental, a eucaristia ergue-se como central. Quando bem reflectida, tal centralidade afirma-se como possibilidade renovada de descobrir o fundamental e o essencial que, não raras vezes e ao longo da história, se viu encoberto pelo emaranhando da microscópica análise teológica, alimentada por “problemas complicados e […] questões bizantinas, que, além do mais, pouco servem à compreensão real e à vivência fecunda” [Torres Queiruga].
Os sacramentos e a vida
Para a sua compreensão primeira impõe-se sublinhar a íntima relação dos sacramentos com a existência, como desenvolvida foi pela teologia sacramental pós-conciliar. Parece consensual o ponto-de-partida de Andrés Torres Queiruga:
Um sacramento é, antes de mais, uma celebração da igreja. Mediante ela os fiéis tratam de se abrir à presença salvadora de Deus, de modo que, acolhendo-a na fé, alimente a sua confiança na ajuda divina e transforme as suas vidas fazendo-as avançar na autenticidade religiosa, tanto pessoal como de entrega e amor aos demais. Por isso os sacramentos se situam nas articulações fundamentais da vida, quer dizer, naquelas situações-limite, como o nascimento ou a morte (Batismo, Unção), a mudança de idade ou estado (Confirmação, Matrimónio, Ordem) ou a angústia da culpa (Penitência), que comovem as raízes da existência e fazem sentir mais intensamente a nossa constitutiva necessidade do apoio de Deus e da sua graça.
[Ibid.]
A centralidade da Eucaristia
Em segundo lugar, é importante perceber, no contraste das especificidades, a peculiaridade que afirma a eucaristia como central, “aquilo que a converte em centro de vida e em conjunção de todos os sacramentos” [Ibid.]. Para o teólogo galego, a resposta não implica grande esforço conceptual. É até, e de alguma forma, simples:
Por sorte, a procura não resulta difícil, pois é sem dúvida o sacramento que conta com apoios e indicações mais claras e eloquentes na biografia de Jesus. Remete antes de mais para a hora da entrega suprema, quando ao final da vida, ante o perigo de ser assassinado, não renega nem a confiança do Pai nem desmaia na entrega “por nós e pela nossa salvação”. Jesus abre, assim, de modo definitivo o inteiro sentido da sua vida. Por isso, ainda que a investigação histórica não possa estar segura de que se tratou ou não de uma ceia pascal, todos os investigadores concordam em que se relaciona intimamente com as comidas que, durante a sua vida, Jesus manteve com os pecadores. Comidas que, como bem se sabe, marcam de forma muito profunda e significativa a sua ação salvadora.
[Ibid.]
Considerar assim a comensalidade evangélica como leitmotiv integrador da existência de Jesus de Nazaré não implica, necessariamente, que se dispa a cruz da sua significação soteriológica. Antes pelo contrário: descentrando a crucificação do exclusivismo expiatório-sacrificial, torna-se possível considerar a Cruz como corolário de um mistério integral de toda a existência de Jesus. Por isso, o mandato jesuânico da última ceia, enquanto memorial, não diz somente respeito ao espaço de tempo dos eventos ocorridos entre o Getsémani e o Gólgota.
Saudade: ausência-presença
É precisamente nesta perspectiva que é preciso redirecionar a reflexão teológica em torno da Eucaristia. Revelando a saudade uma tensão dialéctica de ausência-presença, na celebração eucarística, o que ela há-de revelar será justamente, por um lado, essa consciência de realidade cindida que anseia por comunhão desde a sua raiz e, por outro, essa comunhão já experimentada na proximidade de uma, livremente aceite, carnalidade ferida.
Se o que a comunidade celebra é a presença integral da vida de Jesus em forma de ausência, pelo exercício memorial do rito, o que a saudade na verdade revela, e de alguma forma faz presente, é a Promessa da comunhão que se anuncia na consciência da desunião, tendência para a qual a consciência ou a comunidade saudosa orienta os seus corações, gestos e palavras. Quer isto dizer que a presença é real, ainda que em modo de ausência.
Tudo isto pareceria, porém, uma grande falácia se à categoria de saudade se não recorresse. Neste sentido, o carácter revelador da saudade dirá, na experiência eucarística da ausência, que a presença está simplesmente velada à percepção por via da limitação constitutiva da estrutura humana que a própria saudade revela. Se por um lado, e pela saudade, o ser humano se dá conta da sua radical finitude, por outro é a partir dessa auto-consciência contingente que pode ansiar por união e vislumbrar a comunhão.
A saudade enquanto consciência de carência e aspiração de plenitude
O encontro só se dá na medida em que se abrem os sujeitos à sua possibilidade. Sempre e quando na consciência da comunidade celebrante se anuncia saudosamente a memória dos encontros quenóticos de Deus, abre-se a possibilidade de nesse sentimento de ausência divina, que é a saudade radical que define o ser humano na sua consciência, se vislumbrar, ao partir do pão como com os dois de Emaús, a comunhão anelada e prometida. Por isso, a eucaristia é sinal sensível dessa comunhão, eixo sacramental dessa experiência mais radical do humano que é a saudade enquanto consciência de carência e aspiração de plenitude.