Santo António e a Palavra

Em Santa Cruz, nos oito anos que por aqui passou, frei António seguia o método da altura no ensino – o método da Universidade de Paris. No que diz respeito à Escritura, era comum interpretar a Bíblia em três direções, em três âmbitos: na lectio, na disputatio ou na praedicatio.

Santo António dispunha aqui de muitos códices medievais da Escritura para compor os seus sermões. Santo António utilizou a versão latina da Vulgata, mas sobretudo as bíblias glosadas, especialmente a de Nicolau de Lyra.

Santo António citou mais o Antigo Testamento do que o Novo, pois também combateu os albigenses e os cátaros – essa espécie de reedição marcionita da alta idade Média que colocava em causa o Deus do antigo Israel opondo-o ao Deus de Jesus Cristo, como se fossem diferentes. Os livros do Antigo Testamento mais citados são Isaías, os Salmos, Job e os Génesis; no Novo Testamento Lucas, Mateus, João, Marcos, Apocalipse, 1 Cor, Atos e Romanos. Só a segunda e a terceira Carta de João e o bilhete a Filémon é que nunca são citados.

Santo António cita a Escritura pela sua autoridade inspirada: como livro inspirado inspira a reconstruir a relação e a vida com o Senhor da vida e da natureza. Recorre a vários símbolos da natureza e cita muitos outros autores para lá do texto bíblico. Muitas vezes interpreta em registo de alegoria para moralizar e ensinar os seus ouvintes. Na noemática bíblica privilegiou o sentido espiritual dos níveis anagógico, tropológico e alegórico. 

Para Santo António, as criaturas são palavras vivas do Criador. Por isso, parte do livro aberto da natureza para a Bíblia propriamente dita, sendo que a primeira é ela mesma um livro aberto, uma bíblia, pois Deus está presente nas suas criaturas. Assim, a natureza é um lugar teológico, é um espaço e um tempo da revelação de Deus: é um conjunto de palavras de Deus ou sobre a beleza do Deus criador perfeitamente compaginável com a Palavra da Revelação. Esta compaginação insere-se assim no estilo da exegese antoniana – uma exegese que também aqui é uma exegese de concordância. Depois de buscar a semântica das palavras, Santo António busca o respectivo sentido espiritual.

De seguida justifica isso com uma exegese que tenta pôr em acordo diferentes textos, diversas passagens. Estamos, portanto, diante de uma exegese que poderíamos chamar espiritual, inspiradora, naturalmente crente, sem as preocupações da leitura crítica histórica que se começará a desenvolver poucos séculos mais tarde.

Fresco no tecto da capela de Santo António, Madre de Deus, Lisboa. Foto XAN 2012.
Fresco no tecto da capela de Santo António, Madre de Deus, Lisboa. Foto XAN 2012.

A sermonaria antoniana apresenta uma estrutura simples tripartida:

a) no início do sermão Santo António apresenta alguns dos temas que vai aprofundar a seguir, extraindo-os de alguns dos textos da liturgia dominical ou do livro da liturgia das horas; começa na maior parte das vezes por escolher um conceito ou temática do Antigo Testamento, o qual vai desenvolver a seguir através de várias distinctiones (distinções);

b) no corpo propriamente dito do sermão, aplica a metodologia exegética mais comum desde os inícios da Idade Média: a exegese espiritual ou alegórica, muito desenvolvida pela escola de Alexandria a partir de S. Clemente e, sobretudo, de Orígenes, buscando, à maneira agostiniana o chamado sensus plenior (o sentido ou interpretação dos textos);

c) na última parte apresenta um conjunto de exortações morais ao ouvinte dos seus sermões, o que cunha os seus sermões com um forte sentido moralista à boa maneira dos comentários dos Padres da Igreja ou dos autores medievais.


Foto da capa: Santo António prega da nogueira. Fresco de Annigoni Pietro, nave central da Basílica de Santo António. Foto de Deganello Giorgio, Arquivo Messaggero di Sant’Antonio.

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