Em 11 de abril de 1963, o Papa João XXIII dirigia, não só aos crentes, mas a “todas as pessoas de boa vontade” uma encíclica surpreendente: Pacem in Terris, a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade.
Surpreendente porque abre uma nova linguagem na Doutrina Social da Igreja. Vai buscar os seus fundamentos não só aos textos da Igreja, mas também à Declaração Universal dos Direitos Humanos, na ocorrência dos 15 anos da aprovação da declaração adotada pela Assembleia Geral da ONU, no dia 10 de dezembro de 1948.
Começa a Encíclica por afirmar que a paz só se pode estabelecer a partir da “ordem estabelecida por Deus” e no nº 4 afirma:
Contrasta clamorosamente com essa perfeita ordem universal a desordem que reina entre indivíduos e povos, como se as suas mútuas relações não pudessem ser reguladas senão pela força…
É uma encíclica que nasce de um papa com um coração de bondade e de misericórdia, mas que tem a ver com a sua larga experiência de contacto com os meandros das relações internacionais. João XXIII, nascido em 25 de novembro de 1881, depois da sua ordenação como Bispo, foi “visitador apostólico” na Bulgária, depois Núncio Pontifício na Grécia e Turquia e, em 1944, Núncio Apostólico em Paris.
Não menos importantes foram diversas transformações a nível mundial a que assistiu:
- Primeira Guerra Mundial (1914-1918)
- Revolução Russa (1917)
- Assinatura do Tratado de Versalhes (1919)
- Grande depressão (1929)
- Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
- As bombas atómicas em Hiroxima e Nagasaki (1945)
- Início da Guerra Fria (1945-1991)
- Fundação da ONU (1945)
- Processo de descolonização afro-asiático (1945)
- Publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)
- Revolução Cubana (1959)
- Início da guerra do Guerra do Vietnam (1959
- Crise dos Mísseis em Cuba (1962).
Em pleno desenrolar do Vaticano II e depois da publicação de Mater et Magistra (15 de maio de 1961) esta encíclica abre um novo capítulo na relação da Igreja com o mundo. Pela primeira vez nos documentos pontifícios aparece uma referência à ONU e a aceitação dos direitos humanos como alicerce da paz.
Na Pacem in Terris, os direitos da pessoa humana são, pela primeira vez, fundados e reconhecidos no seu conjunto, a partir dos princípios cristãos, pelo Magistério eclesial:
- Direito à existência e a um digno padrão de vida (10)
- Direitos que se referem aos valores morais e culturais (12-13)
- Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência (14)
- Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência (15-18)
- Direitos inerentes ao campo económico (18-22)
- Direito de reunião e associação (23-24)
- Direito de emigração e de imigração (25)
- Direitos de caráter político (26-27)
Mas a estes direitos corresponde uma exigência de deveres recíprocos sem os quais os direitos deixam de ter alicerce onde se sustentem. Estamos diante duma nova linguagem e de um discurso que abre pontes para os diversos contextos sociais e paras as diferentes correntes que começavam a emergir no mundo e na Igreja, numa atenção aos sinais dos tempos que aparecem, aqui, como lugar teológico.
A Pacem in Terris não deixa para trás os grandes desafios que começam a surgir no horizonte:
- A xenofobia.
- A condenação dos regimes totalitários.
- A convivência baseada na força e no poder.
- O desarmamento, incluíndo as armas nucleares.
- O destino universal dos bens e a função social da propriedade privada.
- Os direitos humanos inalienáveis e seus deveres irrenunciáveis, compreendidos de modo complementar, expressando especial esperança e apreço pelo papel mundial da ONU e pelo texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
- A centralidade e universalidade da lei natural para a perspetiva do diálogo entre os povos e culturas.
- A atenção aos mais fracos da comunidade, pois se encontram em posição de inferioridade para reivindicar os próprios direitos e prover a seus legítimos interesses.
- O direito/dever à desobediência civil, à objeção de consciência e à participação dos cidadãos na vida pública.
Estas são apenas algumas notas para que cada um possa reler este texto que ganha uma dimensão de alicerce da paz. Os Papas que se seguiram (Paulo VI, João Paulo II e Francisco) continuaram a prosseguir com tenacidade, sobretudo a partir das mensagem para o Dia Mundial da Paz, este caminho aberto por João XXIII.
A Pacem in Terris adquire ainda uma dimensão atual com as diversas mensagens do Papa Francisco nas suas diferentes denúncias e condenações da “Terceira Guerra Mundial” e os seus convites ao perdão e à não violência. Mas é sobretudo na Fratelli Tutti que a Pacem in Terris encontra a sua atualização mais significativa.
Neste mundo de violência é bom regressar aos textos que abrem horizontes para a paz e a fraternidade que neste tempo de Páscoa está bem sintetizado na saudação de Jesus: “A Paz esteja convosco”

“Com a mão na consciência, ouçam o grito angustiado que de toda parte da terra, das crianças inocentes aos idosos, dos indivíduos às comunidades, sobe ao Céu: paz! Paz! Suplicamos a todos os governantes que não fiquem surdos a este grito da humanidade”.
Apelo do Papa João XXIII, no auge da Crise dos Mísseis em Cuba, outubro 1962.
Foto da Capa: O Papa João XXIII assina a encíclica Pacem in Terris, a 9 de abril de 1963, no Vaticano. (Foto de Keystone-France / Commons Wikimedia).
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