Regresso à Galileia

Não temais. Ide anunciar aos meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me verão.

Mt 28,10

Neste tempo em que nos damos conta da nossa fragilidade, esta passagem de Mateus serve de início à minha reflexão. Uma reflexão que é, um conjunto de quietações sobre o que a Igreja será depois desta provação.

“O tempo é graça”. “Tempo é dinheiro”. Este tempo de pandemia coloca-nos diante desta dupla visão: dois ângulos de uma realidade que não dominamos. Como afirmava D. António Marto num santuário vazio:

É uma situação dramática e trágica, sem precedentes, que nos convida a refletir sobre a vida e, em primeiro lugar, a ir ao essencial, que muitas vezes esquecemos quando a vida corre bem. Põe a nu e revela a vulnerabilidade e a fragilidade da nossa condição humana. Às vezes, parecemos tão tremendamente fortes e somos tão tremendamente frágeis e vulneráveis. Leva-nos a pensar sobre o sentido da vida (Para quê vivo? Para quem vivo?) e sobre a possibilidade e a realidade da morte, da nossa própria morte e da dos entes queridos. Obriga-nos a repensar os nossos hábitos, o nosso estilo de vida, a escala de valores que orienta a nossa vida. Não se pode viver só para produzir e para consumir, para ter e para aparecer.

O Tempo é sempre o Tempo de Deus. Mesmo quando o silêncio e a noite parecem mergulhar-nos no vazio sem saída: “sabeis interpretar o aspeto do céu; mas, quanto aos sinais dos tempos, não sois capazes de os interpretar!” (Mt 16,3).

A palavra de Deus é também a “palavra acontecida”, linguagem subtil impressa no coração do tempo onde nos movemos. Como a lemos?

Que Igreja vai nascer depois deste esvaziamento de ritos e de espaços religiosos?

Estamos dominados por ocultas forças que fazem entrever “um governo mundial isento de qualquer controlo”, diante de “subtis formas de ditadura” correndo o risco de instauração de “uma odiosa tirania tecnológica”?

Diante dos profetas da desgraça, para os pobres e simples do reino há boas novas?

A Igreja pós pandemia só pode ser uma igreja mais samaritana, uma igreja capaz de descobrir as sementes de mostarda do reino porque não será mais um cedro do Líbano, mas um pequeno arbusto onde as aves podem fazer os seu ninhos.

Tem que ser uma igreja cada vez mais desclericalizada, sem força nem poder, esvaziada das suas memórias de riqueza e domínio.

Só poderá ser uma Igreja serva e pobre e, por isso mesmo, capaz de estar ao lado de todos os pobres e perdidos desta terra.

Só poderá ser uma igreja onde todos têm voz e vez. Os discípulos, os apóstolos, os homens, as mulheres e os que no íntimo do seu coração “esperam o Reino de Deus”.

Uma Igreja que deve assumir os três mandatos da última ceia: “amai-vos como eu vos amei”, “como eu vos fiz, fazei vós também” e “fazei isto em memória de mim”.

No fundo, a Igreja tem que regressar à Galileia. Reencontrar-se no seguimento de Jesus, aprender a cuidar, a curar, a anunciar o reino, a partir e repartir o pão.

Regressar à Galileia é regressar à simplicidade e à pobreza de quem não tem “onde reclinar a cabeça”, e, mesmo assim, como os discípulos, ousar segui-Lo.

Nazaré, Galileia, Arquivo MSA 2011.
Nazaré, Galileia, Arquivo MSA 2011.

Regressar à Galileia para espalhar a semente. Partir como semeador, preocupado com a seara. Partir sem levar duas túnicas (já repararam na parafernália das vestes litúrgicas? simbolizam serviço ou poder?)

Regressar à Galileia, ao pequenino rebanho, pequeno resto que deve ser fermento, sal e luz, esvaziando-se para que Ele possa preencher os vazios da vida.

Regressar à Galileia, como o papa Francisco tem vindo a proclamar, com a alegria de o anunciar, com a alegria do amor, com misericórdia e compaixão.

Regressar à Galileia para perceber que não é “em Jerusalém nem no monte Garizim que se encontram os adoradores do Pai” e que, por isso mesmo, homens e mulheres de todos os quadrantes, de todos os credos, podem ser verdadeiros adoradores.

Regressar à Galileia para tocar os leprosos, abraçar os pródigos, acolher os pecadores, ficar em casa dos Zaqueus.

Regressar à Galileia para descobrir as flores, as aves do Céu, esta terra que nos foi dada para cuidar e não para destruir.

Regressar à Galileia é regressar ao Evangelho, para que ele não esteja a mais nesta Igreja que o deve anunciar.

Só Ele fará novas todas as coisas e nos ajudará a prosseguir com um coração renovado.

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