Uma vez mais estamos em pleno tempo da quaresma e uma vez mais se faz ouvir o apelo ao discernimento e à conversão.
E sabemos bem, ou pelo menos intuímos, como cada um pessoalmente e todos comunitariamente estamos precisados desse discernimento e dessa conversão. Este tempo de paragem é preciso para que possamos introduzir dinâmicas criativas, que sejam capazes de produzir novidade, de modo a que, depois deste tempo, não continue tudo mais ou menos na mesma.
Porque sempre foi assim…
Não tenhamos ilusões, esse é um perigo real no qual podemos cair com alguma facilidade. Ao vivermos todos os anos o tempo quaresmal, podemos cair em rotinas e hábitos que nos podem conduzir as fazer as coisas, porque sempre foi assim, porque é suposto ser assim, sem percebermos a urgência e a necessidade de introduzir o ‘novo’ que é necessário para que este tempo seja verdadeiramente fecundo. Como é óbvio, não se trata da novidade pela novidade, pois também essa, apesar de aparentemente se revestir do novo, afinal pode também não passar de um hábito e de uma rotina.
Neste tempo em que os cristãos e as suas comunidades são chamados, de um modo especial, ao discernimento, é necessário, no meu entender, estar atentos (a atenção é também uma das notas caraterísticas do tempo quaresmal) a este desafio. Como contributo nesta linha, aponto duas notas que me parecem poder ser relevantes.
A razão de ser da Quaresma é a Páscoa

A primeira tem a ver com a própria razão de ser da quaresma que, como bem sabemos, não existe por causa de si mesma, mas como tempo de preparação para as celebrações pascais. Não digo isto para lhe retirar qualquer relevância, mas, pelo contrário, para destacar a sua real importância. A Páscoa revela-nos o sentido último e pleno da vida de Jesus. O seu viver e o seu morrer desaguam na ressurreição, e esta é marca distintiva do cristianismo, de tal modo que tudo o que com ele esteja relacionado tem de estar marcado por essa dinâmica vital.
A quaresma está em função da Páscoa, é, por isso desta, que deve receber a sua dinâmica e vitalidade. O que pretendo afirmar com isto é que em todo o processo de discernimento quaresmal o lugar central deve ser ocupado pela dinâmica da ressurreição. O centro é a ressurreição e não aquilo que nos afasta dela. É sob a luz da ressurreição que revisitamos o nosso viver para descobrir nele tudo o que lhe é contrário, de modo a poder transformá-lo. O pecado, que devemos reconhecer à luz da ressurreição e do Ressuscitado, não deve ocupar o centro deste tempo. Reconhecer a sua existência é fundamental para podermos
verdadeiramente converter-nos, mas esse processo de conversão, brota do Espírito do Ressuscitado, a partir dele é que somos capazes de reconhecer o que na nossa vida é pecado e não tanto o contrário. A ressurreição é aquele ‘novo’ para o qual nos preparamos, mas, simultaneamente, a partir do qual nos preparamos.
Para que fique claro repito que, não se trata de relativizar o tempo quaresmal, nem de ignorar o pecado, trata-se, pelo contrário, de destacar e colocar no centro da quaresma aquilo que é o mais nuclear do cristianismo. Ajudar a focar-nos nesse centro, preparar-nos para melhor o poder celebrar e viver, essa é a sua razão de ser.
Valorizamos mais a Quaresma que a Páscoa?
A segunda nota, decorre daqui. Porque é um tempo de preparação a quaresma não devia esgotar todas as nossas energias e atenções deixando um espaço pequeno, ou pelo menos menor, para a celebração do tempo pascal. A proposta de um breve exercício ajuda-me a explicar um pouco melhor esta afirmação. Se contabilizarmos as atividades pensadas e realizadas pelas comunidades cristãs durante o tempo quaresmal veremos que, muitas vezes, elas são em maior número e têm maior destaque do que aquelas que se desenvolvem durante todo o tempo pascal. A ideia que fica é que apostamos quase tudo na preparação de uma grande festa que, depois, acaba por ser vivida de um modo concentrado.
O tempo pascal é um tempo ainda mais longo do que o tempo quaresmal. Ele é o coração do qual tudo brota e a partir do qual tudo tem sentido. Nele se deveriam desenvolver, também, as atividades e as dinâmicas mais significativas das nossas comunidades.
Foto: Noli me tangere, óleo sobre tela, Paolo Varonese, sec XVI, Museu de Grenoble
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