Na sua Carta Encíclica Fratelli tutti. Sobre a fraternidade e a amizade social, Francisco apresenta uma formulação própria para o entendimento do que é o povo.
Esta formulação supera as noções superficiais que reduzem a realidade do povo a algo de material, numérico, da ordem da amálgama ou do amontoado, quaisquer, de indivíduos humanos, análogas à junção ontológica que se estabelece entre pedras ou batatas, por exemplo: um monte de pedras, um monte de batatas.
Por outro lado, também supera os sentidos mágicos de povo que se encontram em todas as ideologias e mesmo nas ciências sociais e políticas e demais ciências humanas: o povo vencerá.
Quer os sentidos primeiros quer os segundos não correspondem a coisa alguma real para lá da realidade mental de quem os formula: não têm correlato real. Nem sequer podem ser ditos como abstratos, pois a abstração faz-se necessariamente a partir de algo concreto, de que se abstrai algo com o fim de preservar outro algo, comum.
Tal significa que as comuns formulações de povo são falsas, pois não correspondem a qualquer realidade para lá da que são enquanto modos de pensamento. Ora, o povo não é um modo de pensamento. O povo é uma realidade especial, como todas as realidades colectivas; todavia, esta realidade colectiva não é apenas como todas as outras; da sua definição faz parte algo que diz necessariamente respeito à essência e substância da totalidade dos entes que a constituem: de todos e de cada um dos entes que a constituem, sem excepção.
Filosoficamente, a especialidade própria de um qualquer povo advém-lhe do sentido lógico definidor do próprio humano, que pode ser dito na fórmula aristotélica, segundo a qual o ser humano é o animal que possui o logos. Já em sentido teológico, e sem que o sentido filosófico seja posto em causa, acresce que a esta lógica ontológica humana se junta o facto de haver uma comum filiação transcendental humana num mesmo Pai: os seres humanos são todos filhos de um mesmo Pai, e é esta comum e irredutível paternidade que faz deles irmãos, queiram ou não, saibam-no ou não. A irmandade humana transcende a própria humanidade considerada em sentido mundano imanente.
É este sentido de comum filiação em comum paternidade que permite ao Papa dizer, no §46, que há uma fraternidade que o Pai comum nos propõe. É este mesmo sentido que autoriza que se fale, no §154, em comunidade mundial, fundada sobre o bem comum mundial (§172), de que tem de fazer parte uma família de nações (§173), forma de o povo, que não é coisa intimamente indistinta, se organizar. Como é evidente, o sentido de povo que predomina nessa Carta não é o que coincide com o de unidades colectivas menores do que o todo da humanidade. No entanto, não há, também, termo melhor do que povo para designar tais entidades colectivas, analíticas relativamente ao sentido universal do termo.
Deste modo, os vários povos são parte integrante do que é o povo em seu sentido universal, esse que serve necessariamente de paradigma ao sentido de uma só humanidade de filhos de um mesmo Pai. Mais nenhum sentido o pode fazer. Sem se eliminar as diferenças – necessariamente culturais – entre os diferentes povos, elimina-se a sua diversidade, isto é, faz-se do povo em sentido universal o lugar lógico de convergência de todos os diferentes povos, o que impede a sua diversidade. Um povo nasce sempre da união das diferenças humanas, nunca da sua diversidade: para se construir um povo é-se converso, não se é diverso.
Esta convergência realiza-se através do amor político (§180-182), indiscernível da caridade política, isto é, do amor oblativo pelo outro, do constante labor em ordem ao seu bem, exclusivamente, o que, imediatamente, porque o outro assim também procede, faz que todos sejam literalmente beneficiados.
É este o cerne ativo, segundo o fim de bem do outro, reciprocamente, que constitui a amizade social a que a Carta é dedicada. Esta amizade funda-se em atos paradigmatizados na ação do bom Samaritano, esse que age sem outro fim que não seja o bem daquele que é objecto da sua ação.
Se se universalizar este paradigma de ação em termos de realização concreta, então, obtém-se o sentido da amizade social: ação recíproca entre irmãos que tem como fim o bem-comum do mundo, do povo que constitui o mundo em sentido humano.
Embora o sentido de povo seja mítico, categoria mítica (§158) – talvez entendível à luz de Pessoa quando diz que o mito é o nada que é tudo –, todavia, ainda que ultrapassando toda a métrica mundana, apoia-se na intuição da dignidade imensa de pessoa humana (§107), na grandeza ontológica do ser humano, como tal irredutível, apesar dos esforços de tiranos e oligarcas vários.
Se é ‘mítico’ o sentido da universal paternidade humana, não o é a presença da grandeza ontológica de cada um de tais seres, assim haja quem, como o bom Samaritano, seja capaz de o intuir e de agir consequentemente.
A situação da humanidade, do ‘povo humano’, da humanidade como povo, sempre foi dramática – drama é ação – e sempre foi possivelmente trágica, mesmo que tal humanidade o não soubesse. Ora, nos dias que correm, afirma categoricamente o Papa, no §137, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva.
Palavras duras, estas, próprias de um Papa que é gentil, mas diamantino no que diz respeito às grandes questões, que requerem respostas que sejam capazes de as eliminar. Apenas o amor elimina, aniquila o mal que é possível aniquilar-se; apenas o amor pode, como universal povo em ato de bem, construir a cidade.
Foto da capa: O Bom Samaritano, esboço do pintor impressionista alemão Max Liebermann, 1910. Foto de Tilman2007 | Commons Wikimedia