Podias explicar melhor a tua ideia?

A subversão da dúvida

Ouvimos cientistas vencedores de prémio Nobel contra a vacina da Covid e outros que também receberam o prémio Nobel, mas são a favor. Nos jornais ouvimos uma notícia e nas redes sociais lemos opiniões contrárias de pessoas em quem temos confiança. Jesus disse ser o caminho, a verdade e a vida, mas como encontrar o caminho para a verdade sobre o que se passa à volta, de modo a vivermos verdadeiramente? A desinformação não ameaça apenas a verdade como subverte a dúvida usando-a como produto em vez de caminho.

É frequente pensar-se que duvidar de Deus afasta-nos da fé, mas eu creio que isso acontece apenas quando usamos a dúvida como produto para baralhar as crenças das pessoas. Como ninguém conhece por inteiro toda a realidade e o que é a verdade, há quem faça da dúvida um produto para incutir insegurança. Por isso, acolher com humildade a informação que nos chega sem fazer juízos sobre o conteúdo da mesma é um acto de sabedoria.

Quem vive das certezas fecha a sua mente ao conhecimento mais aprofundado da verdade e, por esse motivo, como diz a escritora Anne Lammott, a grande inimiga da verdade não é a dúvida, mas a certeza.

A subversão da dúvida acontece quando a usamos como produto em vez de caminho. Como caminho, a dúvida manifesta o humilde desconhecimento da verdade, ao mesmo tempo que o desejo imenso de a conhecer. A dúvida como caminho impulsiona o nosso agir, sentir e pensar na direcção da verdade, procurando dar tempo para compreender tudo aquilo que nos é dado a conhecer e, mesmo assim, deixando sempre uma sensação de saber a pouco.

A dúvida como caminho

Bruce Mars | Unsplash
Bruce Mars | Unsplash

Isto é, a dúvida como caminho suscita a sede de saber através das questões e da procura de pistas para encontrar respostas. Frequentemente, encontramos as respostas na vida quando confrontamos o que ouvimos com a nossa experiência pessoal, mas não chega.

A Internet é uma benção na medida em que facilitou o acesso da informação a todos, sem fazer acepção de pessoas. Mas abriu, também, espaço de comércio digital que estimula o consumo que põe pão na mesa de muitas famílias. E ao contrário do passado, em que captar a atenção de uma pessoa dependia dos períodos de anúncios entre dois programas televisivos ou nos intervalos, hoje, qualquer site da internet apresenta-nos anúncios para estimular o consumo enquanto lemos o que nos interessa. E assim nasceu a economia da atenção.

Parece que estamos a consumir informação gratuitamente, mas sem pensarmos muito nisso, estamos a “vender” a nossa atenção.

Sabendo disso, as notícias falsas começaram a usar a mesma psicologia para manipular a nossa atenção e conhecimento. E se nem tudo o que lemos é verdade, gradualmente, começamos a desconfiar de tudo o que lemos e aqui temos duas hipóteses: 1) ou nos tornamos cépticos da verdade; 2) ou nos tornamos exploradores da verdade. Como a segunda hipótese exige tempo e atenção, a susceptibilidade à primeira é maior. O que fazer?

Disse o anjo − Hás-de conceber no teu seio e dar à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus. (Lc 1, 31) − ao que Maria respondeu − Como será isso, se eu não conheço homem? (Lc 1, 34). Maria questionou e usou a dúvida como caminho. Questionar o que desconhecemos ou quando não estamos certos de conhecer é ser curioso da verdade. Jesus garantiu-nos que o Espírito Santo nos ensinaria todas as coisas (Jo 14, 26) e assim se justifica que compreender a verdade sobre aquilo que acontece à nossa volta seja um processo de aprendizagem fascinante.

Quando queremos dizer ao outro que pensa de forma diferente de nós o que sabemos (mas não conhecemos), usamos a reputação dos outros que a sociedade considera terem uma opinião credível. E mesmo quando procuramos informação sobre um determinado assunto, o mais frequente é lermos a fundo o que justifica aquilo em que acreditamos, enquanto o contraponto é lido de passagem. É normal. Pois, o caminho que a dúvida autêntica aponta é difícil. É um caminho feito, também, de portas estreitas.

Conhecer a realidade através da dúvida como caminho exige um equilíbrio entre o sentir e o conhecer para vivermos a verdade, isto é, vivermos Jesus. A subversão do valor da dúvida pode levar a desequilíbrios que nos afastam da verdade, uns dos outros e, em última análise, de Jesus. Neste período em que reflectimos sobre a Igreja Sinodal, a aproximação da verdade mexerá com o nosso sentir e dependerá do nosso conhecer. Duvidar do que nos dizem só faz caminho se a questão for reflexo de genuína curiosidade em vez de juízo.

Basta um simples − “podias explicar melhor a tua ideia?”.

Foto da capa: Head II do artista Tim Shaw, Exposição de Verão na Royal Academy of Arts de Londres. Foto EPA/NEIL HALL 2020.

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