Pode uma abelha ver a face de Deus?

Caminhava por um trilho em Vale de Canas (Coimbra) onde se costuma andar de BTT. Mais tarde, voltei por um outro trilho mais largo. Em ambos os trilhos, o som comum era o zumbido grave e potente dos zangões que andavam por toda a parte, talvez à procura das melhores flores para que as abelhas pudessem começar a recolher o pólen primaveril.

A Terra Inabitável, de David Wallace-Wells

Enquanto sorria e parava para observar, veio-me à mente a imagem da capa do livro A Terra Inabitável, de David Wallace-Wells com uma abelha morta e isolada. Era a imagem escolhida para ilustrar o subtítulo do livro — “como vai ser a vida pós-aquecimento global”. No mês passado, uma notícia que li sobre a extinção dos insectos fez-me pensar se aquela experiência em Vale de Canas não teria os dias contados.

A população de insectos está a diminuir no Antropoceno, a era geológica em que o ser humano está a alterar a face do planeta. Desde os efeitos das alterações climáticas sobre os ecossistemas, à poluição, urbanização, intensificação da agricultura, insecticidas e desflorestação, o interesse económico revela-se como o vilão que comete o ecocídio de inúmeros insectos.

Estes seres repugnantes que pisamos, ou tão pequenos que não notamos, não são objecto habitual do amor das pessoas e ninguém parece estar muito preocupado se desaparecem ou não. Ou, pelo menos, até ao dia em que quiserem mel e não encontrarem nas prateleiras do supermercado.

As abelhas são o exemplo mais famoso de polinizadores que espalham pólen e fertilizam inúmeros ecossistemas terrestres, dando vida e cor às paisagens selvagens que deliciam o nosso olhar durante uma caminhada. Na Enciclopédia Britannica encontrei a hipótese de que se todas as abelhas se extinguissem haveria uma alteração profunda nos ecossistemas e, muito provavelmente, outras extinções se seguiriam à das abelhas. A catástrofe seria impensável.

Por isso, neste mês de Abril em que celebramos o Dia da Terra (22 de Abril), sendo as abelhas e os insectos em geral os mais pequenos, lembrei-me de uma pergunta, no mínimo, um pouco idiota.

Quando em Mt 25, 45, Jesus diz — “Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” — não estaria, seguramente, a falar apenas de crianças porque a parte anterior refere-se a quem tem fome, sede, é peregrino, está sem roupa ou na prisão, o que abrange muitas outras idades. Porém, também os insectos têm fome, sede, migram e se há coisa que não têm é roupa, logo, a pergunta idiota: será que os “pequeninos” incluem os insectos?

Seguramente que alguns leitores estarão a franzir o sobrolho e a pensar — “Miguel. Ridículo!” — Mas imaginem comigo. Não será que ver Deus no outro e restringir a presença de Deus a seres humanos é uma visão limitada do amor de Deus? Será que Deus se manifesta apenas em quem tem consciência de si e, por isso, é humano? Não estaremos a “antropomorfizar” a possibilidade de Deus fazer-se presente nos mais pequeninos como os insectos?

Michael O’Malley, A Sabedoria das Abelhas

No Evangelho de S. João 1, 18, encontramos a intuição de que — “A Deus jamais alguém o viu. O Filho Unigénito, que é Deus e está no seio do Pai, foi Ele quem o deu a conhecer”. — Um rasgo de esperança que poderia abrir a imaginação a vermos Deus nos insectos. Mas, por outro lado, em Jo 14, 9-10, Jesus diz — “Quem me vê, vê o Pai”. — Logo, sendo Jesus verdadeiramente homem, e verdadeiramente Deus, n’Ele vemos o homem e vemos Deus e, talvez, venha daí a impossibilidade de vermos Deus nos insectos, como parte dos pequeninos do Evangelho. Mas o Catecismo da Igreja Católica no n. 339 ensina que — “As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas”. Logo, nos insectos está reflectida a sabedoria e a bondade de Deus.

No livro de Michael O’Malley, A Sabedoria das Abelhas, o autor esclarece que — “as abelhas têm duas notáveis qualidades que as tornam merecedoras de especial atenção: elas comunicam e pensam” — coisa que nem todos os humanos estão a conseguir fazer. Cada abelha não tem consciência de si, mas juntas perfazem uma consciência colectiva.

Não faço a mínima ideia se nos momentos de consciência colectiva, as abelhas tratam somente de assuntos da colmeia, ou vislumbram, “pelo seu próprio ser” uma presença do Amor que as leva a dançar. Mas imagino que, se fossemos realmente imagem de Deus, não poderiam elas olhar para nós e ver a Sua face?

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