Páscoa, a eclosão da eternidade no tempo

A morte exibe o seu aguilhão em demasiados lugares e nas mais diversas situações do nosso mundo. A pobreza que vitimiza mais de metade da população mundial, a violência doméstica, as taxas de suicídio, o abuso do álcool e das drogas, os maus hábitos alimentares e a falta de respeito pela natureza, que está a conduzir à destruição do nosso planeta, são exemplos concretos que nos poem diariamente diante do domínio da morte.

Além disso, os grandes progressos científicos e técnicos do nosso tempo têm sido mais postos ao serviço de uma cultura de morte do que do desenvolvimento integral dos povos. As novas tecnologias servem mais para concentrar o domínio do poder financeiro e para tornar mais ameaçadora a indústria mortífera da guerra do que para tornar o mundo mais humano.

O mistério pascal leva-nos a cultivar uma esperança bem diferente do otimismo ingénuo das utopias sociais, económicas, políticas e culturais que precederam os tempos da atual crise. Já no século passado, o teólogo Bernhard Häring advertia que “o pessimismo de hoje provém do otimismo superficial de ontem”.  Na verdade, depois do entusiasmo suscitado pelo crescimento triunfante do bem-estar a que assistimos durante décadas, vemos agora que os sistemas económicos geram mais desigualdades e ameaças do que confiança no futuro.

Diante de um panorama tão pouco animador, cresce em muitos a impressão de estarmos confinados a uma cerca de estéril impotência, mas a Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II, não convida a deixar-nos  contaminar por esta onda de desistência: “Podemos legitimamente pensar que o futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindouras razões de viver e de esperar”. O progresso humano ao longo da história implicou processos de maturação, que podemos associar ao dinamismo pascal de morte e ressurreição. Esse progresso fez-se à custa de verdadeiras travessias, com todos os riscos que elas implicam, pois há travessias que conduzem ao abismo e outras que nos elevam a mais sólidos patamares de vida.

O peso dos dias e as preocupações quotidianas deste mundo tão turbulento podem embotar a frescura da nossa fé pascal. Todavia a Páscoa celebra-se na primeira lua cheia da Primavera, tal como acontecia há muitos milénios antes da nossa era cristã, seguramente por se tratar de uma quadra cheia de simbolismo. Nesta altura em que a vida revive, cada flor manifesta a força da vida e o mistério de Deus.

Um mundo diferente começa a eclodir

Copo com ramo de amendoeira em flor, óleo sobre tela. Vincent van Gogh, março 1888
Copo com ramo de amendoeira em flor, óleo sobre tela, Vincent van Gogh, março 1888

O acontecimento pascal ajuda-nos a sair do negativismo, que pode ameaçar a nossa força criativa. Precisamos de estar mais atentos a sinais de vida em germinação, para percebermos que, ao lado das realidades que nos inquietam, também florescem iniciativas auspiciosas, que alimentam a esperança. Apesar de isso não ser notícia na comunicação social, cresce, por exemplo, o número daqueles que optam por consumir menos e melhor, ou que partilham o transporte e fazem troca de serviços, assim criando novos laços de proximidade. Tais gestos, ainda não levados muito a sério pela opinião pública, são um sinal de que um mundo diferente começa a eclodir. Acreditar no Ressuscitado é confiar que não se perdem no vazio todos os esforços de construção de um mundo mais humano e feliz.

Viver a paixão pelo homem e entrar neste movimento de vida eterna

A Páscoa não nos garante que passemos a viver num mundo ideal, mas permite lançar um olhar sobre a história, para lá das chocantes situações em que ainda se revela o domínio da morte. Deus não nos impõe o sofrimento, mas está connosco nas nossas provações. É uma ousadia excessiva acreditar que Cristo veio para que tenhamos a vida em abundância (Jo 10, 10), mas é essa confiança que convida os cristãos a sair dos túmulos de desencorajamento para assumir compromissos em favor de um mundo digno para todo o ser humano, com a certeza de que nada se perderá daquilo que tivermos vivido com amor. A morte só vai sendo derrotada, quando o amor ao próximo supera o egoísmo.

A teologia paulina sublinha que o fruto da árvore da cruz é a vitória sobre a morte, quando o nosso ser perecível for revestido do que é imperecível (1 Cor 15, 54). A fé cristã confessa que da eclosão pascal brotou um movimento de vida para lá das fronteiras do tempo e é essa confiança que nos faz vislumbrar a primavera de Deus no meio das vicissitudes tortuosas da nossa condição humana. É por isso que a Páscoa deve ser celebrada como o acontecimento que rejuvenesce o mundo. Somos convocados a viver a paixão pelo homem e a entrar neste movimento de vida eterna.

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