Está no horizonte um tempo de regresso à vida normal das comunidades. Esperemos que a prudência e o respeito pela vida e saúde de todos nos possa ajudar a encontrar um tempo sem os limites da convivialidade e do encontro.
Que Igreja vai emergir deste dilúvio avassalador?
A oração do Papa Francisco no fim de tarde de 27 de março pode dar o tom do que é indispensável em tempos de crise:
À semelhança dos discípulos do Evangelho, fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda. Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos. Tal como os discípulos que, falando a uma só voz, dizem angustiados «vamos perecer» …
Com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos.
A Fratelli Tutti vem trazer a primeira linha de conversão: o amor compassivo do Samaritano propõe a todos uma conversão profunda que encontre formas criativas do amor ao próximo.
Estamos ainda longe de perceber o alcance desta carta encíclica na vida da Igreja. O pós-pandemia vai ser o grande teste. Seremos capazes de operacionalizar em ações pastorais o paradigma da Fratelli Tutti?
Lançar-nos-emos no caminho de Jerusalém, dispostos a pôr de parte os nossos medos e regras, para nos debruçarmos sobre o irmão ferido? Seremos uma Igreja em saída ou passaremos ao lado preocupados com o esplendor do culto no templo?
O projeto de uma fraternidade universal, no trabalho incansável do Papa Francisco, convida todas as estruturas religiosas para que a fé não seja manipulada pelos grandes interesses económicos, políticos, culturais… e não seja uma desculpa e justificação para a guerra, para o comércio de armas e a escalada do armamento. Só mediante um cuidado mútuo, uma atenção fraterna especialmente para com os mais pobres e vulneráveis poderemos louvar juntos a bondade do Deus Criador.
Uma outra questão que o tempo de pandemia lança à Igreja é o reencontro e aprofundamento de uma teologia da Igreja doméstica. Todos estamos convictos que o tempo dos grandes ajuntamentos passará a ser a exceção, reservada a alguns locais icónicos de peregrinação. A realidade da Igreja doméstica, da catequese familiar, irá naturalmente ser desenvolvida como espaço privilegiado de crescimento e de celebração da fé.
O reencontro com os meios rápidos de comunicação digital vai exigir uma profunda reflexão pastoral, que até à data ainda não se realizou. Em que medida podem surgir comunidades cujo laço é a comunicação virtual?
Durante a pandemia multiplicaram-se as transmissões de celebrações, procissões, encontros. Não precisaremos mais de evangelho do que rituais? Como é que os meios de comunicação poderão ser um veículo do evangelho transformador da vida?
O Papa Francisco vai deixando, no caminho da pandemia, desafios únicos que alguns consideram que arrastam a Igreja para caminhos de infidelidade e de traição à sua missão.
Que aprenderão as diferentes Igreja locais umas com as outras? Que aprenderão das outras igrejas não católicas? Que aprenderão dos outros grupos religiosos ou culturais?
Seremos uma igreja que aprende ou voltaremos a ser uma Igreja que só sabe ensinar?
Como seremos capazes de acolher a frescura de tantos desafios renovadores do Papa: no plano ecuménico, no papel da mulher, nos desafios de uma igreja sinodal, pobre, sem poder, mas com uma capacidade de ser próxima dos feridos, perdidos, dos que, como os discípulos de Emaús, saem sem regresso?
A igreja vai apressar as reformas que este novo mundo exige ou vai ancorar-se nas falsas seguranças de antigos modelos? Como é que esta reforma poderá acontecer?
Gostaria de terminar com um pequeno texto de D. Helder Câmara, citado por Norbert Arntz, em O pacto das Catacumbas, Paulinas, 2015:
Hoje, ao pequeno-almoço, disse aos observadores não católicos […] que se mostravam impacientes com toda a pompa de São Pedro: “João XXIII parece-me uma ave prisioneira numa gaiola dourada”.
Também já tinha dito a mesma coisa a Jean Guitton, outro dos impacientes…
Assim como na hora da Providência o Papa foi libertado por Deus dos seus Estados Pontifícios, (nessa altura, Pio IX e os católicos em todo o mundo não entenderam), assim chegará o dia em que Deus nosso Pai libertará o vigário de Cristo do luxo do Vaticano. Durante o bombardeamento de Roma passou pela minha cabeça a ideia de que Deus iria atuar: permitiria que uma bomba conseguisse pôr fim a tudo o que de outro modo se afigurava impossível abandonar. Mas isso não aconteceria: Rockfeller construiria um Vaticano ainda maior e mais luxuoso.
A reforma deve vir de dentro.