
Das nossas recordações de infância aos encontros pascais com o Ressuscitado, a humanidade é percorrida por um fio de horizonte que a une, a alimenta e a sustém: a Memória. Dela cuidar constitui uma sabedoria e um desafio.
A Páscoa, caminho de memória
Tendemos a associar o mistério da Páscoa ao futuro: também nós, um dia, participaremos do mistério da morte e ressurreição de Jesus, de cujo Corpo participamos e nos alimentamos. Se a Páscoa tem a ver com o passado também, é mais facilmente recordada quanto a Jesus e aos seus discípulos. E quanto ao nosso passado pessoal, à nossa memória? Que ligação poderá existir entre a história de cada um de nós e esta Páscoa a que também pertencemos?
Sabemos que uma existência reconciliada com o passado permite viver o presente de um modo mais liberto; sabemos também que tal reconciliação só acontece através de um recordar, e não através de um esquecer. Por isso recordar é um verbo densamente pascal (como qualquer verbo!): implica uma passagem, um movimento, uma travessia, um perder e recuperar “cem vezes mais”. Através de uma leitura meditada de três relatos pascais evangélicos, procuraremos descobrir como os primeiros discípulos reconheceram o Ressuscitado através de um processo de memória. O leitor poderá, se o desejar, fazer-se acompanhar de um Novo Testamento e percorrer, primeiro, os textos bíblicos que serão propostos para a leitura.
Os Evangelhos não apresentam discursos teóricos ou doutrinais para expor a sua fé na Ressurreição de Jesus: o lugar do discurso, do ensinamento, está reservado a Jesus, o Mestre; aí os discípulos não ensinam, apenas seguem. Para expor o acontecimento pascal, os Evangelhos relatam experiências de encontros pessoais, testemunhas que reconheceram o Ressuscitado. Não apenas que O viram, mas que O reconheceram. Ver é da ordem do evidente, do que impõe, de algo que não nasce de nós; mas a experiência pascal pede também uma abertura, um discernimento, uma liberdade. Reconhecer é um trabalho de leitura dos sinais, dos textos, dos acontecimentos. Por isso só os discípulos podem reconhecer o Ressuscitado, e cada discípulo com o seu nome próprio e a sua história, a sua memória.
O Novo Testamento no seu conjunto – especialmente os quatro Evangelhos, o livro dos Atos dos Apóstolos e as Cartas de Paulo – apresentam diversos testemunhos de encontro e reconhecimento do Ressuscitado. A sua pluralidade – plasmada, por exemplo, em pormenores e modos diferentes de relatar este acontecimento – releva não só que não se trata de relatos jornalísticos neutros, como também que se trata de relatos assentes na memória e na tradição oral. De facto, segundo os investigadores nos estudos bíblicos, os textos que nos chegaram terão sido elaborados, na sua versão definitiva, cerca de 30 a 40 anos após os acontecimentos que tiveram lugar em Jerusalém. Tal terá uma razão muito prosaica: a morte das primeiras testemunhas, os apóstolos, discípulas e discípulos que deram início à vida das comunidades cristãs. Antes de ser texto, o relato pascal foi memória, catequese oral, tradição alimentada pela pregação. E foi para preservar essa memória que surgiram os textos do Novo Testamento.
As Mulheres e a memória do sepulcro vazio (Mt 28, 1-10)
Um dado é comum aos quatro Evangelhos, conduzindo-nos assim ao núcleo primitivo da experiência pascal cristã: a ida das mulheres ao sepulcro.

Uma investigadora norte americana, Kathleen E. Corley, através da análise dos textos bíblicos em comparação com a cultura mediterrânica antiga, sugeriu recentemente a hipótese de as primeiras comunidades cristãs se reunirem em torno de um gesto muito feminino de fazer a memória funerária do seu Mestre, com o gesto da fração do pão que Ele instituiu.
Algo parece evidente: a fé no Ressuscitado não advém primeiramente de um exercício de reflexão doutrinal ou de busca de provas – atividade tradicionalmente masculina, sobretudo no século I dos filósofos, escribas e doutores da lei – mas sim de uma abertura afetiva da memória em torno dos sinais e das marcas do Mestre de Nazaré.
Daí que os Evangelhos sejam unânimes em referir as dificuldades dos discípulos varões em dar crédito ao testemunho das mulheres que vão ao sepulcro e se deparam com o facto de o Senhor não estar lá: mesmo elas próprias parecem fora de si (Mc 16, 8). Deparamo-nos, aqui, com a memória do sepulcro vazio. Algo de uma experiência similar pode dar-se na nossa vida: a experiência de voltar à casa de alguém recentemente falecido; essa pessoa já lá não está, é um lugar vazio. Sentimos aí, talvez pela primeira vez, uma falta, a ausência de um corpo.
Da experiência destas mulheres temos hoje apenas testemunhos, sinais escritos, elementos. A fé no mistério pascal pode comparar-se a uma rede de experiências que se entrecruzam e se alimentam em tensão – a presença na comunidade, os sinais da fração do pão e da água batismal, o sentido das Escrituras e da história da salvação, o serviço aos irmãos mais pobres… Toda a nossa vida será um peregrinar neste mistério. Mas aqui parece surgir uma dimensão essencial: a visita feminina ao sepulcro. Depois advirá a pregação de Pedro no templo de Jerusalém – narrada pelo livro dos Atos dos Apóstolos – uma pregação triunfal, acompanhada de sinais em nome do Ressuscitado e da adesão de novos membros ao Caminho, primeiro nome pelo qual foi conhecida a comunidade cristã. Depois virá isso.
Mas antes vem o luto, a companhia possível na morte, o seguir o Mestre para lá da Cruz – para o sepulcro. Os Evangelhos são unânimes em referir a deserção dos Doze na Paixão: não poderão, por isso, ver o túmulo vazio, a memória da dor, dar-lhe um lugar afetivo. Só para as mulheres a morte terá um lugar, uma memória.
Não obstante, os Evangelhos são claros em afirmar que esta memória do sepulcro é uma memória pascal: há uma passagem, um movimento que impede as mulheres de ficarem retidas, paradas, centradas no desaparecimento e morte do seu Mestre.
Do sepulcro vazio é proclamada uma Boa-Notícia que as mulheres deverão transmitir aos discípulos, convertendo-as em missionárias. A tristeza tem lugar, mas não tem a última palavra. A memória do sepulcro – do sofrimento, da perda, da morte – não é nem evitada, nem autocentrada, mas sim atravessada: é uma memória pascal.
Os Discípulos de Emaús e a memória da Escritura e da Fração do Pão (Lc 24, 13-35)
Nas diversas linguagens evangélicas sobre os encontros com o Ressuscitado encontramos vestígios de dois movimentos.
Por um lado, os discípulos que permaneceram em Jerusalém após a Paixão, possivelmente numa atitude discreta e receosa perante o meio adverso, mas, não obstante, a reler e fazer memória do projeto de Jesus.
Por outro lado, os discípulos que, após a desilusão de Sexta-feira Santa, regressaram aos seus locais de origem que terão deixado para seguir o Mestre de Nazaré. Deste movimento serão exemplo os discípulos de Emaús, um relato próprio do Evangelho de Lucas.

A memória, mesmo que fragilizada pela tristeza, faz parte do caminho e abre à companhia do Ressuscitado. Os discípulos não reconhecem o Senhor pois não são capazes de ver para lá daquelas que eram as suas expectativas do Messias. Necessitam de fazer um caminho, um processo que é comum a qualquer ser humano: a cura da memória. Um acontecimento traumático os fez afastarem-se de Jerusalém: a morte de Jesus. Não era esse, de modo nenhum, o fim que previam e esperavam para o Messias. O fracasso, o sofrimento e a injustiça não tinham lugar no seu seguimento, no que consideravam ser a vocação e o projeto de Jesus.
São, não obstante, capazes de falar dessa tristeza, dessa memória, quer entre eles, quer com o companheiro desconhecido de viagem. A recordação dos acontecimentos, a abertura da memória, a leitura do passado recente colocá-los-á num caminho pascal de cura.
O texto expõe a presença de dois elementos à disposição dos discípulos, que são mediação privilegiada do próprio Ressuscitado: a Escritura e a Fração do Pão, nome primitivo com que a comunidade designava a Eucaristia.
Podemos reconhecer aqui os elementos que ainda hoje formam a liturgia eucarística: primeiro, a leitura da Escritura. Esta constitui em si uma memória privilegiada que ilumina, alarga e alimenta a nossa própria memória. Através das Escrituras, os discípulos saem do círculo fechado do presente da sua tristeza e desilusão, para encontrar na tradição de um povo e de uma comunidade os testemunhos da presença de Deus na história. Uma Escritura que nos chega até hoje, não apenas com os escritos de Moisés (a Lei) e dos Profetas, mas também com o Novo Testamento, a memória dos nossos pais na fé.
Segundo, a Fração do Pão. Foi o gesto, o único testamento que Jesus deixou em sua memória, o sinal do seu corpo e da sua vida entregues. Agora, os discípulos reconhecem o Mestre, vivo e presente, quando Ele já lá não está, tal como no sepulcro: agora, o Corpo de Jesus são os próprios discípulos, a sua voz, os seus membros, a sua presença. Tal como o sepulcro vazio, também a memória das Escrituras e da Fração do Pão não prende os discípulos, mas coloca-os a caminho, em direção aos companheiros de Jerusalém. O Ressuscitado desaparece da sua vista quando O reconhecem, porque não é um ídolo, mas a memória viva e libertadora de Alguém que está presente.
Pedro, os companheiros e a memória da Galileia (Jo 21, 1-19)
Uma tradição primitiva, presente nos Evangelhos de Mateus, Marcos e João, refere o mandato que o Ressuscitado confia às mulheres e aos discípulos de se dirigirem à Galileia, onde O verão (Mt 28, 10).

Poderá estar aqui presente, possivelmente, uma expressão de comunidades de discípulos de Jesus vinculadas não tanto a Jerusalém e aos Doze Apóstolos, mas às zonas rurais por onde Jesus passou a ensinar e a curar. Mas a mensagem é sobretudo teológica: o Ressuscitado não é outro senão o mesmo Jesus que “passou fazendo o bem” (At 10, 38) nos caminhos da Galileia, nas suas parábolas, nos seus encontros e milagres, no chamamento dos discípulos. É o mesmo Jesus: não é possível encontrar o Ressuscitado senão na memória do Profeta do Reino de Deus. No fundo, será preciso regressar à Galileia, ao início do Evangelho.
O evangelista João elabora uma catequese em torno a este regresso à Galileia no seu capítulo 21.
Aí, Pedro e alguns dos discípulos estão a pescar, como quando foram chamados a seguir Jesus. Trata-se da memória de uma vocação originária e primordial. Também aqui não encontramos Pedro e os Apóstolos a pregar em Jerusalém e a liderar a comunidade, tal como é narrado no Livro dos Atos: o encontro com o Ressuscitado dá-se na memória da sua passagem pela Galileia onde partilhou o pão e o deu a comer à multidão. Também surge aqui a memória das pescas infrutíferas dos discípulos e das suas perigosas travessias do mar, restabelecidas pela presença do Senhor: a memória pascal reconhece as passagens do perigo e da dor para a libertação, da morte para a vida.
É neste regresso à Galileia como memória coletiva dos discípulos que o Evangelho de João nos apresenta a memória pessoal de Pedro. Também a esta o Senhor quer reconciliar, não através do juízo, da prova ou da condenação, mas através do amor. Três perguntas, três insistências de Jesus sobre o amor, trazendo imediatamente à memória as negações de Pedro na Paixão. Tal insistência deixa Pedro triste: se o Senhor sabe tudo, porque pergunta? O processo é doloroso: o Senhor não precisa de uma tripla declaração que compense a tripla negação, Ele conhece o amor de Pedro. A sua pedagogia conduz antes Pedro ao lugar da sua Paixão, da sua negação, da perda da sua união ao Mestre. Terá de ser no amor, e não apenas na fé, que Pedro seguirá a Jesus e viverá o seu serviço de líder da comunidade. Mas, antes, terá de recordar os seus passos mal seguidos e reconciliá-los no amor.
Se a memória pascal conduz ao seguimento na Galileia, também conduz às quebras e dúvidas desse caminho. Tudo faz parte da vida do discípulo, tudo é lido, dialogado e sanado por Aquele que a todos dá o seu Espírito. Naquela que é uma narrativa pascal, estão presentes dois aparentes fracassos: uma pesca infrutífera, de noite, e a recordação de Pedro da sua negação. Também essas memórias fazem parte da fé pascal de Pedro e da nossa, para que o Ressuscitado possa não julgar ou condenar, mas recriar a partir das suas cinzas. O seguimento de Jesus é, também, um caminho de cura da memória
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