Esta é a história do João, 16 anos acabados de fazer, pendurado entre uma velha alcunha de família e a sua nova identidade adolescente.
Gilberto Borghi e Chiara Gatti
Era março e estávamos todos fechados em casa por causa da pandemia do coronavírus. Com as escolas fechadas e muitas atividades suspensas, as famílias viram-se fechadas na própria casa, limitadas às poucas e necessárias saídas.
O meu marido passou a trabalhar fechado no seu escritório, os meus dois filhos (7 e 16 anos) passavam o tempo entre as vídeo-aulas e o chat com os amigos, e, finalmente a avó (a minha mãe), com demência senil e a ficar sem memória, estava recolhida num lar de dia. E, naturalmente, dado que todos os laços familiares anteriores ficaram baralhados, era necessário inventar outros novos: uma operação bastante difícil, dados os condicionalismos que pesavam e oprimiam os vários estados de ânimo.
Entretanto, quem entre nós mais sofria com isto tudo era o João, o meu filho mais velho, de 16 anos, agora constantemente ligado à Net com os amigos, quando antes estava sempre fora com o seu skateboard pelas ruas da cidade. Antes, viamo-lo apenas à hora das refeições, com o skate debaixo do braço, os jeans largos e gastos e os auriculares sempre nos ouvidos. Devorava a comida num instante, com a cabeça metida no prato, um enorme tufo de cabelos cobriam-lhe os lindos olhos escuros, limitando-se a uns grunhidos inexpressivos como resposta às poucas perguntas embaraçadas que eu e o pai lhe fazíamos.
Quando era criança, chamavamo-lo Kico. Era um tratamento familiar que ele próprio aceitava naturalmente.
Mas uma tarde, tinha ele já 12 anos, quando eu lhe pedi da cozinha algo de importante que tinha esquecido, ele, do quarto com a porta fechada, gritou: “Chega de me chamar Kico! Que nome é esse? Já não sou uma criança!”. Um arrepio subiu-me pelas costas: tinha chegado a adolescência. Passado algum tempo, ao entrar no quarto dele para apanhar a roupa para lavar, vi que no ecrã do PC, num chat com os amigos, se destacava uma imagem, e percebi, então, que, agora, para todos, ele era “CR7”.
Voltei para a cozinha: CR7? Mas que raio de nome? A minha cabeça andava às voltas!
Agora, porém, também CR7 partilhava o estado de permanência forçada que todos nós vivíamos e, naturalmente, de vez em quando tinha de ser chamado pelo nome. Decidimos voltar a chamá-lo só “João”, mas a avó, teimosamente, continuava a chama-lo “Kico”. Então ele gritou para ela: “Não, o meu nome é João, Joãoãoãoãoão!” E a avó, carinhosa, respondia: “Está bem, Kico, não leves a mal!”
Os dias passavam devagar, apesar da primavera estar a rebentar lá fora; a única novidade era o encontro da noite quando, depois do jantar, todos saíam às varandas e cantavam o hino nacional para se animarem uns aos outros… Nesta ocasião, o único acontecimento do dia, a minha filha de 7 anos aplaudia alegremente como se estivesse num balcão do teatro, enquanto o João – CR7, murmurava da sala de estar com ironia: “Coitadinhos!…”.
Outro momento muito delicado deste período foi o pijama. Desde o início do retiro forçado, o João usava o fato de treino mais velho como pijama, dando-me apenas uma vez a possibilidade de o apanhar para o lavar rapidamente. De facto, quando entrava no quarto dele que, sem sucesso, eu pedia para ele arrumar, encontrava roupas e sapatos espalhados debaixo da cama. Então, com jeito, tentava arrumar a parte superior da cama, que incluía o filho deitado com auriculares nos ouvidos e o telemóvel colado à mão, num estado entre o apático e o arrogante, conforme as fases.
Consegui, desta forma, pegar nos jeans que ele tanto gostava, aqueles rasgados e largueirões. Aí ele acordou: “Não, mãe! aqueles não!… Por favor, mãe, sai! Não me chateies!”
De repente, percebi que tinha pisado um campo minado por ter mexido no uniforme do CR7, que se completava com uma camisa preta com uma enorme caveira na frente, que até metia medo ao passar a ferro. Quando saí do quarto, apareceu à porta a avó reclamando: “Kico, hoje, vais-te vestir para vir almoçar, não é?” Enquanto ele de dentro rugia: “Foraaaa!”, eu empurrava amavelmente a minha mãe e sussurrava-lhe: “Vamos almoçar!”.
Foi por isso com enorme surpresa que, por ocasião do vigésimo primeiro dia do nosso retiro familiar, vimos aparecer o João para jantar, vestido com os seus jeans e a camisa preta. A televisão, com os seus noticiários pesados, acabara de ser desligada e a avó persistia no seu comentário sobre as almôndegas que tinha no prato e as outras almôndegas do seu tempo, enquanto o João acabava de se sentar no seu lugar diante de um prato cheio.
Pela primeira vez, levantou a cabeça, mexeu o tufo do cabelos, olhou para as almôndegas com um meio sorriso e perguntou: “Avó, lembras-te quando começaram a chamar-me assim? É que um amigo meu perguntou-me, depois de ter ouvido a avó a chamar-me da porta do meu quarto”.