Os Frades da Comunidade

O chamamento de Jesus no Evangelho continua a encontrar ouvido através dos séculos. As respostas são diferentes, assim como os homens que o escutam. Francisco de Assis encontrou uma forma de vida tão convincente, porque ficou próximo do espírito e da letra do Evangelho. Através da sua experiência de vida pessoal, deu origem a um movimento, cuja vitalidade é semelhante à sua. Por isso mesmo nunca pensou fundar uma ordem religiosa, nem tinha necessidade de o fazer. A comunidade dos “frades menores” cresceu em volta dele, quase contra a sua vontade, quase sem a sua colaboração. Quando a sua comunidade lhe exigiu empenhos e decisões que iam além das suas forças, ele entregou-a ao Papa e cedeu o governo ao vigário da ordem, frei Elias. O próprio Francisco, porém, foi e ficou como a “forma de vida dos frades menores”: exemplo e modelo de vida para todos os frades de todos os tempos.

Leonhard Lehmann, OFMCap, L’idea fondante dell’Ordine franciscano, em: La grazia delle origini, EDB, 2009

Após a morte de Francisco, o número dos frades já ultrapassava os cinco mil: uma grande bênção do Senhor, mas, também, um problema para gerir.

Depois da entrada na Ordem de figuras como António de Lisboa e Boaventura de Bagnoregio, a estrutura da mesma sofreu mudanças significativas, devido às exigências da própria vida e das fraternidades cada vez mais numerosas. Nessa altura, deu-se uma primeira divergência entre as fraternidades situadas nas cidades e as outras, situadas nos ermitérios. A diferença entre elas chegou a ter um nome: os “frades da comunidade” e os “frades da antiga observância”. Ambos procuravam conservar o carisma de Francisco, mas não era fácil concretizar a primitiva forma franciscana de viver. A evolução da sociedade e da Igreja puseram à prova os primeiros três séculos de vida da Ordem dos Frades Menores.

Surgiram várias reformas, que tinham como objetivo recuperar o ideal originário de Francisco, e, deste modo, a “árvore” franciscana ampliou-se, oferecendo à Igreja e ao mundo uma multidão de irmãos e irmãs, autênticas testemunhas do evangelho. Atualmente, a primeira Ordem da família franciscana é constituída por três ramos: frades menores, frades menores conventuais e frades menores capuchinhos. Embora cada ramo seja autónomo, são comuns o tronco e a seiva que alimenta a comunhão e a especificidade de cada ramo.

A caraterística principal de todos os franciscanos é testemunhar a alegria do Evangelho vivido na simplicidade, humildade e fraternidade; e proclamar, com a palavra e o exemplo, que ser discípulos de Jesus é fonte de alegria e de liberdade.

As celebrações do oitavo centenário abrangem quatro acontecimentos importantes da vida de Francisco e da Ordem:

  • a aprovação pontifícia da Regra de vida (2023) e o presépio de Greccio (2023),
  • os Estigmas no monte Alverne (2024),
  • o Cântico das criaturas (2025),
  • e a Páscoa (passagem – morte) de Francisco (2026).

Constituem um rico e articulado percurso, que envolve toda a Família franciscana, em ordem a uma redescoberta da espiritualidade de comunhão, reavivando a riqueza do carisma franciscano com um olhar profético rumo ao futuro.

Este ano comemora-se a Regra de vida e o presépio de Greccio.

Presépio na Igreja de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Foto MSA 2023.
Presépio na Igreja de Santo António dos Olivais, em Coimbra. Foto MSA 2023.

O Papa Francisco – cujo nome e cuja atuação é já uma “atualização” do carisma franciscano – na sua Carta O sinal admirável sobre o significado e valor do presépio, afirma:

Com a simplicidade daquele sinal, São Francisco realizou uma grande obra de evangelização. O seu ensinamento penetrou no coração dos cristãos, permanecendo até aos nossos dias como uma forma genuína de repropor, com simplicidade, a beleza da nossa fé… a ternura de Deus. (…) O presépio é um convite a “sentir” e a “tocar” a pobreza que escolheu para si mesmo o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para o seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-lo e a servi-lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados.

Enfim, viver o carisma franciscano é deixar-se interpelar profundamente pelo mistério de Cristo pobre e crucificado: seguir os seus passos até tornar-se uma só coisa com Ele, para glória de Deus Pai.

Mas, quais são os passos que “hoje” percorre Jesus?

No mês passado, em janeiro 2023, morreu, em Palermo (Sicília – Itália), “Fratel Biagio” (o irmão Braz), um homem que, depois de “encontrar” Cristo, mudou o rumo da sua vida. Inspirado pelo poverello de Assis, tornou-se pobre com os pobres e enriqueceu muitos com a riqueza do seu amor misericordioso. Passou, também, por Portugal em peregrinação a Fátima e a Santo António dos Olivais; era um homem que “cheirava” a Jesus…

Escreveu dele Maurizio Patriciello (um Padre que, também, passou por Fátima e Santo António dos Olivais):

A tua vida, Braz, veio para me lembrar a mim, à Igreja e ao mundo, que o amor verdadeiro não conhece meias medidas; que os enamorados sabem ousar, arriscar, pôr-se em jogo, desafiar o destino. Sempre excessivos, sempre presentes. Foste um faminto, frade. Ampliaste o número dos homens e mulheres que nunca ficam satisfeitos. Que olham continuamente para além do horizonte. Que não têm medo de nada, nem do pecado. Que nunca param, nem sequer diante da evidência. Milhões de seres humanos morrem à fome: querias matar a fome a todos, mas não era possível. Mesmo assim, não baixaste os braços: deste de comer aos pobres da cidade de Palermo, confiando em Deus, confiando na Providência. Aos pobres de fome juntaram-se os pobres de espírito, os pobres da vida. Não te atiraste com raiva contra os ladrões dos fornos dos outros, mas procuraste-os, encontraste-os e ajudaste-os a não perder a esperança, a dignidade, a fé. Irmão Braz, deste um murro no estômago a muitos tíbios como eu.

Fratel Biagio, o irmão Braz, não pertenceu a nenhuma estrutura da família franciscana, mas partilhava o ideal de vida de Francisco de Assis
Fratel Biagio, o irmão Braz, não pertenceu a nenhuma estrutura da família franciscana, mas partilhava o ideal de vida de Francisco de Assis

O irmão Braz não pertenceu a nenhuma estrutura da família franciscana, mas, sem dúvida, partilhava o ideal de vida de Francisco de Assis que, numa palavra, consiste em aproximar-se cada vez mais da pessoa de Jesus Cristo.

Em Portugal, a presença dos frades da comunidade (Conventuais ou Claustrais) durou até 1568, para recomeçar, em 1967, com a comunidade de Coimbra, em Santo António dos Olivais e, mais tarde, com as comunidades de Lisboa, Vale de Chelas (1983) e Viseu, Igreja de S. Francisco dos Terceiros (1998).

Qual foi a sua postura na igreja e na sociedade portuguesa?

Respondo a esta pergunta com um excerto de um texto que publiquei na revista Itinerarium, LXIV (2018):

O projeto pastoral que os frades conventuais implementaram na Paróquia de Santo António dos Olivais (e nas outras comunidades) procura responder ao modelo familiar da Igreja, isto é, um povo constituído por comunidades cristãs corresponsáveis, fraternas, abertas ao mundo e conscientes da missão que receberam: partilhar de graça o muito que receberam, isto é, o “tesouro” do Reino de Deus, diante do qual todo o resto é “lixo”, como dizia S. Paulo. Aqui está a “pobreza franciscana”… que não é pobreza, mas, “riqueza”! S. Francisco, já no final da sua vida, repetia aos seus frades: “Irmãos, comecemos a servir o Senhor Deus, porque até agora pouco ou nada fizemos” (1 Cel, 102). E o cronista (Tomás de Celano) refere: “Perseverando incansável no propósito de uma santa renovação de vida, esperava poder recomeçar de novo”.
Eis a vida cristã e franciscana: começar sempre de novo, renovando a alegria da Páscoa e correndo pelas estradas deste mundo para acender nas pessoas a luz e a esperança, comunicando a boa notícia que Jesus nos ama, caminha sempre connosco e não nos deixa sozinhos ou entregues às sombras da morte.

Termino com uma pergunta que dirijo, em primeiro lugar a mim próprio, mas, também, a todos os demais franciscanos: qual é o desafio que, hoje, o mundo e a Igreja lançam aos discípulos de Francisco de Assis e de António de Lisboa?

A resposta, naturalmente, é pessoal e conforme a sensibilidade de cada um. Porém, acho que, como na altura de Francisco o mundo ansiava pela paz e pela justiça social e a Igreja precisava de uma profunda renovação, assim, hoje, o mundo anseia pela paz e por uma melhor integração dos homens e das mulheres na sociedade global que formamos. E a Igreja precisa de sinais de unidade e de diálogo inter religioso, inter cultural e inter nacional. Será que a Ordem franciscana conseguirá pôr-se na vanguarda deste movimento de renovação no mundo e na Igreja, recuperando, inclusive, a unidade entre os vários ramos que a compõem?

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