A experiência monástica cristã já não encontra na tradicional expressão “fuga do mundo” a sua mais completa identidade: se toda a vocação cristã é uma vocação de seguimento de Jesus e de envio ao mundo, também nessa linha se configura a vocação monástica. É neste horizonte que podemos aproximar-nos das propostas do monge cisterciense Carlos Maria Antunes, cujo subtítulo desta obra – Da inospitalidade ao encontro –, representa uma boa síntese do percurso aqui exposto.
O conjunto de três textos apresentados – Despertar de um sonho de separação, É preciso transver o mundo e A força da vulnerabilidade –, que resultam de reflexões pronunciadas em contexto de encontros de formação, traçam no seu conjunto uma proposta de reconfiguração da experiência cristã. Carlos Maria Antunes parte do magistério do Papa Francisco e de referências da sua tradição cisterciense – Bernardo de Claraval e Thomas Merton – mas também de escritores das áreas da poesia e da literatura, além da espiritualidade. O aguilhão é colocado numa questão fundamental: não há uma transformação do mundo de acordo com as dinâmicas do Evangelho de Jesus sem um permanente acolhimento e conversão das feridas que habitam o íntimo de cada um de nós enquanto crentes. As linguagens que encontramos no Novo Testamento que diagnosticam a condição humana à luz da revelação de Deus em Jesus são permeadas por imagens de fragilidade: o Crucificado, o corpo ausente, os doentes e leprosos dos Evangelhos, os apóstolos perseguidos… Esta condição de fragilidade ou vulnerabilidade é que torna possível um anúncio de misericórdia, feito, não a partir da força ou da superioridade, mas da consciência da fraqueza. Paulo di-lo-á de modo paradigmático: “Quando sou fraco, então sou forte” (1Cor 12, 10).
“Talvez devêssemos prestar mais atenção à efetiva reciprocidade que existe entre autoconhecimento e conhecimento de Jesus”. O risco é o de tornar a fé numa ideologia e o apostolado numa fuga de si mesmo. O seguimento de Jesus é sempre, em primeiro lugar, um caminho de conversão pessoal, conversão essa que é suscitada, não a partir dos propósitos e esforços pessoais, mas a partir dos apelos e sofrimentos que advêm do encontro com o outro. A qualidade das relações humanas é o primordial medidor de uma vida crente: a fé é essencialmente um encontro, com Jesus pela mediação dos irmãos e da comunidade. A leitora e o leitor que se aventurarem nas páginas de Oh noite que guiaste!, certamente usufruirão – numa leitura lenta e pausada, bem ao ritmo monástico – da escuta de perguntas incómodas, mas também do saborear de uma imersão no coração do Evangelho, força capaz de transformar o mundo, transformando as relações.
Podemos realmente viver em conjunto? A fraternidade é possível? A vida é melhor e mais feliz, quando partilhada? A resposta parece óbvia, porém a experiência no encontro com outros, para não terminar em incompreensão e amargura, desafia-nos a um percurso tomando como guia a vulnerabilidade que a relação expõe. E se a noite for a luz que nos conduz? Ou, dito de outro modo: e se nas fraturas que emergem na relação descobrirmos os alicerces do encontro?
Obra: Oh noite que guiaste!
Autor: Carlos Maria Antunes
Edição: Paulinas
Páginas: 128