O turista nosso irmão

No momento em que começo estas linhas, não tenho notícia de qualquer ataque a autocarros de turistas em Portugal. No entanto, este verão está a ser particularmente desconcertante. Avionetas que caem em sítios improváveis, vitimando inocentes, um país em chamas com um sistema de comunicações que falha repetidamente, incendiários que nem em prisão preventiva ficam e que têm a desfaçatez de tentar subornar as forças policiais, atentados terroristas e, ainda, outras calamidades que, face às referidas, até parecem ser de menor importância.
Nas últimas semanas, o descoco tem atingido níveis consideráveis, pelo que, até ao dia 23 de setembro, outros desconchavos podem vir a acontecer.

Face aos horrendos e desumanos atentados levados a cabo recentemente na cidade de Barcelona, vitimando mortalmente e ferindo dezenas de naturais e de turistas, é fácil esquecermo-nos de que os mesmos turistas haviam sido alvo de violência no início de agosto por alguns catalães.

O “bom” terrorismo

Mas não lhe chamaram terrorismo – aqueles que obrigaram um autocarro turístico a parar, cheio de passageiros aterrorizados enquanto os pneus do veículo eram furados e frases de protesto eram escritas nos vidros numa língua que não conheciam, terão feito, afinal, vandalismo. Segundo os autores, no entanto, nem sequer vandalismo praticaram – ter-se-iam limitado a levar a cabo um ato simbólico contra os efeitos nefastos do turismo, o qual descaraterizaria os bairros. Procurando maior eficácia, juntaram ainda a esse ato simbólico um outro: a destruição de bicicletas.

Turistas a mais?

As crescentes críticas feitas por alguns europeus à presença de turistas nos seus países não nos devem preocupar menos do que a recusa de muitos (e por vezes os mesmos) em se empenharem seriamente na resolução da crise dos refugiados. Portugal tem, é certo, uma posição singular na Europa e mesmo no seio na Península Ibérica, pelo que, até agora, não fomos seriamente atingidos pela febre dos que se pretendem resguardar de influências estrangeiras, como se se tratassem de infeções alienígenas.
O património genético, bem como o património cultural português, refletem ondas e ondas sucessivas de invasões e migrações, que se sedimentaram em camadas consecutivas até ao momento da definição das fronteiras territoriais, no séc. XIII. A partir de então e durante séculos, neste pequeno retângulo, os nossos antepassados construíram a sua identidade, sobretudo de costas para Castela, abraçando os contactos obtidos por via marítima.

Estou muito grata a quem trouxe a canela sem medo de descaraterizar a cozinha de então

Muculmanos residentes em Barcelona manifestam-se contra o ataque terrorista em Las Ramblas
Muculmanos residentes em Barcelona manifestam-se contra o ataque terrorista em Las Ramblas, solidarizando-se com as vítimas e repudiando o atentado.

Grata a quem trouxe de fora sementes diferentes e deu origem à cultura do milho, hoje considerada tão portuguesa e tradicional. Grata àqueles povos que fizeram da gaita de foles um elemento tradicional do folclore nortenho e, do fado, a canção de Lisboa. Grata aos nossos antepassados que quiseram ir mais além.
Um povo que não quer receber o Outro está cheio de si e convencido de que nada tem a aprender com o seu irmão estrangeiro. Um povo que não quer receber o Outro esquece-se de que estar vivo é estar em permanente transformação e de que o nosso semelhante faz parte dessa transformação. Com efeito, a identidade nacional não é uma entidade metafísica abstrata e imutável. É realidade em lento e constante movimento. Não é rocha inamovível, mas duna de areia que viaja em deslocação, integrando os grãos de areia que o vento nela deposita.

Enveja

Cinicamente, poderíamos defender a legitimidade da presença do turista entre nós com o argumento de que a sua vinda estimula a economia, melhorando as finanças do país. Há, porém, quem replique que tal não interessa já que a melhoria acontece apenas nas finanças de alguns.
A ideia de que as finanças de alguns são entidades separadas e que em nada contribuem para a globalidade do PIB diz-nos que há quem gostaria de ser beneficiado imediatamente, mas que não o é. Ou mais propriamente: que há quem não queira que os outros sejam imediatamente beneficiados quando eles próprios não o são; e isto ou por falta de paciência ou por inveja ou por ambas. A primeira fortifica-se; já a segunda só se resolve eliminando-a, pois “Um coração tranquilo é a vida do corpo, mas a inveja é doença para os ossos” (Pr 14,30).
E se a Luís de Camões aprouve ter terminado os Lusíadas com a palavra enveja, apraz-me também encerrar este texto com uma chamada à reflexão sobre esse tema que, ontem como hoje, se me afigura oportuna e apropriada.

Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.

Luis de Camões, Os Lusíadas,
Canto X, 156

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