O tempo do estrangeiro

A segunda das seis propostas (1994) que o escritor Italo Calvino (Cuba, 1923-Itália, 1985) deixou para o nosso milénio é a da rapidez (por ordem: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e, ainda, a não concluída consistência).

A rapidez, contudo, não é entendida como um valor em si, já que o tempo da narrativa pode ser “retardador, ou cíclico, ou imóvel”. Refletindo sobre a literatura, o autor escreve que “o conto é uma operação que se realiza sobre a duração, é um sortilégio que atua sobre o passar do tempo, contraindo-o ou dilatando-o”. Se substituirmos “conto” por “vida” temos a noção de que esta se realiza sobre uma determinada duração, agindo sobre o tempo. Bem sabemos que, na vida como na narração, o valor do tempo é resultado de uma perceção e que essa depende da experiência individual.

O tempo frágil

Nos apressados anos 2000, em que se valoriza o instantâneo, têm surgido alguns apelos, mais ou menos teorizados, sobre a necessidade de abrandar a agitação do quotidiano, refrear a ansiedade do fast tudo e recuperar “a paciência do oleiro”, “o prazer de esperar”, sobre que escreveu Tolentino Mendonça numa das crónicas (1-3-2014) da revista do semanário Expresso.

O que fazer, então, com o tempo? A rapidez e a lentidão, o ápice e o vagar, não são cadências excludentes; devem ser usadas com a temperança exigida em cada momento.

O que distingue o tempo do estrangeiro do nosso tempo não é a velocidade ou a ausência dela, é a fragilidade.

O tempo do estrangeiro é arrastado e lento; pode ser veloz, mas é também entrecortado, como um stacatto emocional, que marca um convulsivo ritmo do coração. É um tempo frágil que impregna o indivíduo dessa mesma fragilidade e o coloca numa permanente situação de vulnerabilidade.

Por isso, o tempo do estrangeiro é um tempo com significado ético, no modo como é vivido pelo sujeito e na interpretação que dele se faz. O estrangeiro tem de se sujeitar a um tempo que não é seu, nomeadamente a um tempo de espera donde não retira o prazer de que fala Tolentino Mendonça. O pior da espera, sabêmo-lo bem, é menos a expetativa do que a incerteza, o horizonte longínquo não assusta tanto como a sua ausência. Enquanto espera, o estrangeiro não sabe do seu tempo nem do seu espaço, está à mercê de outros ritmos.

Fragilidade ou resiliência

Estou a descrever um cenário em que o estrangeiro, no caso, a pessoa refugiada, parece desempenhar apenas um papel passivo, o que é desde logo um excesso e seria mesmo um argumento ferido de paternalismo. Não é esse o meu entendimento, nem o meu testemunho. Entre o desespero e a coragem, a inércia e o dinamismo do movimento, as pessoas refugiadas são amiúde exemplos de resiliência.

Sirvo-me da proposta de Grove (2018) para encontrar exemplos de resiliência, mais a partir do verbo “fazer” do que a partir do verbo “ser”. Os agentes humanitários que apoiam grupos de migrantes veem-nos normalmente apenas na sua extrema vulnerabilidade e não integram as suas estratégias de superação nas estratégias globais de construção de resiliência.

Consequentemente, muitas vezes acontece as pessoas não se envolverem nas propostas de integração apresentadas pelas equipas técnicas (Pearce/Lee 2018: 32-33). Respeitar, aceitar, dar liberdade ao outro para decidir sobre a sua vida (sem com isso abdicar de proporcionar alternativas) é um exercício que implica amiúde desistir da visão idealizada, do fascínio construído à volta da pessoa refugiada.

Recomeçar do zero?!

Muitas vezes, falamos do direito a recomeçar a vida num novo lugar, num começar do zero. Não é possível um começar do zero, sem memória, sem história. Um ser humano sem história é um ser humano sem identidade, por isso, o estrangeiro procura trazer para o espaço, onde pode lançar novas raízes, marcas da cultura original. O chão seguro que a Europa oferece é um chão inócuo, mas ele precisa de juntar ao presente os traços da memória que carrega.

Pensemos um pouco mais no chão. Imaginemos que o chão é rochoso, a terra estéril. Imaginemos que faz muito calor, ou que não para de chover, ou que está um frio que gela o solo. Como podemos construir neste chão? É preciso conhecê-lo e prepará-lo, para que nele se possa construir, preparar a terra para que se deixe salgar.

O exercício do acolhimento

Quem espera, desespera nos corredores da burocracia...
Quem espera, desespera nos corredores da burocracia…

Não é fácil acolher: é uma experiência complexa de burocracia, obrigações, expetativas, desencontros, prazos para cumprir, surpresas administrativas [e aquele interlocutor distante e incompreensível que é o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras]. É uma mistura de justificações e contextualizações, exigências e perguntas sem resposta, um movimento de rebote em que os mais vulneráveis são entregues ao arbítrio, ora da força voluntária ora da força da inércia, de uma espécie de cordão de segurança que os separa do mundo “normal”.

O exercício real do acolhimento é bem mais difícil do que o da sua preparação. Menos devido às exigências do cuidar, sobretudo porque na hospitalidade concreta o outro se torna este, de uma ideia passa a um indivíduo. Passa a ter nome, está ali, tem anseios e temores, traz uma memória, pede a medo ou exige de forma veemente, aceita e recusa, partilha ou prefere o silêncio… e deixa de ser perfeito. O outro, estoutro, interpela-nos numa alternância entre o fascínio e o medo da diferença. O fascínio é sem dúvida inspirador e mobilizador, mas não é o que alimenta o compromisso a longo prazo.

É preciso que se deem as condições materiais justas para que aqueles a quem chamamos refugiados possam verdadeiramente encontrar refúgio.


Nota: O título é devedor do tema da IX Jornada de Teologia Prática, da Faculdade de Teologia, da Universidade Católica Portuguesa, na qual tive o privilégio de participar com uma intervenção de que o presente texto faz eco. O estrangeiro a que me refiro é a pessoa refugiada.

Foto da capa: Migrantes a caminho do centro de acolhimento de refugiados em Dobova, Eslovénia, 23 de outubro de 2015. Mais de 680 mil migrantes e refugiados chegaram ao continente europeu, por mar, só em 2015, o maior movimento populacional desde a Segunda Guerra Mundial. EPA / IGOR KUPLJENIK

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