11 de abril de 2021 – Evangelho do 2º domingo da Páscoa
Ano B – Jo 20, 19-31
Tradução livre a partir do comentário de Luciano Manicardi, prior do mosteiro de Bose
O segundo domingo da Páscoa continua a apresentar-nos o anúncio da Páscoa: “Cristo ressuscitou”. Mas apresenta-nos também a reflexão que este anúncio provoca na comunidade cristã. O Evangelho de hoje fala-nos da dimensão comunitária da ressurreição, a ressurreição de um grupo de discípulos, a ressurreição vivida como uma experiência comunitária. Estamos habituados a pensar na ressurreição como um evento escatológico, pós-morte muito mais do que como uma experiência aqui e agora, a pensar nela como um evento individual, pessoal e não comunitário. Mas a fé na ressurreição de Jesus exige um enraizamento na comunidade e supõe uma experiência aqui e agora.
De facto, no Evangelho a situação de morte é comunitária e diz respeito ao grupo de discípulos. E a morte, neste caso, significa perplexidade, paralisia, não saber o que fazer, medo, privação do passado e falta de futuro. Privação do passado porque Jesus, o Senhor que reuniu e liderou, já não existe; privação do futuro porque o Senhor, que com a sua palavra abriu perspetivas, indicou caminhos a seguir, metas para viver e objetivos a perseguir, já não existe. O desenraizamento temporal leva ao encerramento, ao estreitamento dos horizontes, ao fechar-se sobre si mesmos. É necessário encontrar um novo respiro, o sopro único do Senhor, aquele sopro que é o Espírito do Senhor que pode marcar a única continuidade possível com o Senhor que já não está lá. Aquele Espírito que é o alicerce da vida comunitária. Temos de reconstruir as relações desgastadas e as relações do organismo comunitário, que foi ferido, entre outras coisas, pelo abandono de um dos Doze. O sopro que a comunidade precisa é do sopro do próprio Senhor, esse sopro que também emana do corpo das Escrituras que contém a palavra de Deus que é espírito e vida (Cfr. Jo 20, 30-31; 6, 63) e só isso pode dar vida ao corpo comunitário segundo lógicas que não são mundanas, mas evangélicas.
A página de João apresenta-nos a comunidade dos discípulos na noite do dia da ressurreição. No dia em que Maria Madalena proclamou aos discípulos “Vi o Senhor” e lhes disse o que o Senhor lhe dissera (Jo 20:18). Mas isto não foi suficiente para mover os discípulos. Não acreditaram numa mulher, como atestam os outros evangelistas ainda mais vincadamente. A comunidade dos discípulos não só é prejudicada pela perda do Senhor, como fica abalada pelo abandono de Judas, paralisada e confusa pela vergonha da traição de um dos Doze e pela negação de Pedro, como também é atravessada pela desconfiança dos discípulos em relação a Maria Madalena. Quando a desconfiança se infiltra numa comunidade e se torna a lente com a qual se olha para os outros ou para outro, a comunidade fica em risco de implosão. O Evangelista expressa claramente a situação da comunidade: fechamento, medo, desconfiança mútua, falta de fé no Ressuscitado. O horizonte da morte domina. Podemos imaginar o clima de desconfiança mútua: a descoberta de que Judas traiu o grupo de discípulos e entregou Jesus às autoridades foi traumática e desestabilizadora para os outros discípulos, e insinuou a terrível questão: em quem posso confiar? Esta é a situação de crise que o grupo de discípulos está a viver. E a esta crise – que é uma novidade inesperada, embora anunciada há muito tempo – reage-se de formas diferentes e é preciso tempo para alcançar um novo equilíbrio.
O processo segue normalmente estas fases: a uma crise, sintoma de que é necessário encontrar uma organização diferente e um novo equilíbrio para poder rersponder ao impacto com a história, segue-se um tempo de reorganização, que em algum momento – se a reorganização for bem sucedida, porque as tentativas falhadas também devem ser tidas em conta – se torna um processo de consolidação que se abre a um período de estabilidade que, mais cedo ou mais tarde, tornar-se-á obsoleto e voltará a ser abalado por uma crise, ou seja, pela necessidade de repor o equilíbrio, a fim de aderir de novo à realidade e nela se inserir eficazmente.
Bem no centro desta crise, no coração deste grupo amedrontado, mas que partilhou um passado com Jesus, a memória desse Ausente torna-se presença e o Ressuscitado torna-se presente, como acontecerá de novo uma semana depois, no Dia do Senhor, no domingo, dia da ressurreição. Esse grupo continuará assustado e confuso, diminuído e perturbado, ferido e incerto, mas tem um ponto unificador: é um grupo nascido e criado em torno de Jesus, formado em torno da sua palavra e do seu ensino. Claro que a pessoa e a palavra de Jesus também despertaram oposição e revoltas, como a de Judas, ou a traição e cobardia de Pedro, ou como nos restantes discípulos dos quais não sabemos praticamente nada, no entanto, sabemos o que é que criou aquele grupo. O que o juntou. O que o manteve unido. Foi a presença de Jesus que está no coração desse grupo, mesmo na sua ausência. A manifestação do Ressuscitado no coração do grupo de discípulos manifesta como podem continuar a viver mesmo sem Jesus, aquele que caminhava à sua frente apontando-lhes o caminho. Para tal precisam de receber o Espírito que animava Jesus, que o movia e o guiava.
A comunidade de discípulos também está destroçada devido à perda de laços firmes: Tomé não está presente com os outros quando Jesus se apresenta. O individualismo tomou posse da comunidade e cada um comporta-se como quer. Estar presente ou estar ausente, colaborar ou fazer por conta própria: quando já não se quer prestar contas aos outros, quando se cede à tentação e à vertigem individualista, então a comunidade já não é um local de expressão da liberdade, em que vive a caridade, mas torna-se uma prisão. As ações comunitárias passam a ser uma opção, conferindo-lhes uma dimensão facultativa, e isso é, para alguns, sinal da própria liberdade inalienável, um verdadeiro direito a ser defendido com toda a garra.
A reação de Tomé às palavras dos outros discípulos é de desconfiança, é uma resposta dura que mostra que não confia nos seus irmãos e irmãs. Vemos aqui expressa a dinâmica do mal numa comunidade: espalha-se como um incêndio, por círculos concêntricos como os produzidos por uma pedra atirada à água, cresce e amplia-se como uma avalanche que se torna enorme e imparável: é a lógica e a dinâmica da desconfiança, da suspeita e da calúnia murmurante, é a banalização do mecanismo da propagação do mal numa comunidade. Tomé não acredita, quer verificar por si mesmo: não confia. Somos confrontados com a atitude daqueles que não acreditam no amor, mas que precisam sempre de novas verificações, daqueles que precisam de testar o amor de quem ama. Daqueles que, portanto, não sabem valorizar o amor vivido no passado para saber que são amados, não têm memória e querem sempre confirmações, movendo-se numa atitude de reivindicação e de prova da tangibilidade do amor do outro. Ou seja, o outro à minha disposição, enquanto eu privo os outros da minha disponibilidade. A reação de Tomé, de arrogância e pretensão para com os outros, é selada por uma espécie de juramento: eu ponho condições, diz Tomé, e se estas não se verificarem, “eu não acreditarei” (Jo 20, 25).
A cena seguinte mostra Jesus novamente a manifestar-se aos discípulos, oito dias depois, e entre os discípulos está também Tomé. Jesus dirige-se a Tomé acedendo às suas exigências. E desta vez a reação de Tomé é radicalmente diferente da que tinha tido antes. Porquê? Porque Tomé foi acolhido na sua reivindicação, na sua desconfiança, na sua descrença. E isto supera a sua resistência, a sua descrença. Jesus não implementa estratégias de convicção, mas cede ao que Tomé exigiu mostrando que conhecia em profundidade o coração deste discípulo. Tanto assim é que Tomé já não sente necessidade de pôr o dedo nas feridas, de estender a mão e colocá-la no seu lado. Não precisa de se debruçar sobre o sofrimento do outro, porque reconheceu o seu próprio mal. Foi acolhido no seu profundo mal. Tomé não faz os gestos que solenemente colocara como condição da sua crença, mas imediatamente confessa a sua fé em Jesus como Senhor e Deus. Tomé agora acredita no amor e deixa-se vencer. E renuncia às suas pretensões, à sua desconfiança, aceitando inclusive fazer a figura de fraco. Tomé aceita-se aceitando e reconhecendo quanto é amado.
A incredulidade de Tomé, Caravaggio, 1601, https://en.wikipedia.org/wiki/en:Sanssouci_Picture_Gallery
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