Texto de Irmã Maria Gloria Riva
A atração pela contemplação, a reflexão sobre o Mistério e o desejo de que os outros participem das coisas contempladas. Eis as duas dimensões fundamentais de António, que emergem desta pintura de Frei Carlos.
Frei Carlos era um frade de origem flamenga. Espírito de artista, tinha professado, em Lisboa, no ano crítico de1517. O ano das Teses de Lutero afixadas em Wittenberg e que iriam dividir o mundo da cristandade. O frade, pertencente à ordem de São Jerónimo, dedicou-se à pintura, tornando-se famoso pelos seus retábulos. Uma das suas obras é dedicada a Santo António e terá feito parte de um retábulo ou díptico, entretanto perdido. Com traços delicados e fineza de investigação, Frei Carlos permite-nos entrar pé ante pé no escritório de António, enquanto o Santo, mergulhado no silêncio, está compenetrado na leitura.
É um dia claro e a luz inunda o escritório de António. Apesar da delicadeza da imagem, tudo se desenrola com fortes contrastes simbólicos que expressam bem a complexa relação do Santo com o estudo, a oração e o desejo de comunicar aos outros as coisas sugeridas pelo Espírito Santo. Se, por um lado, o centro do painel é Santo António em oração, todo compenetrado na leitura do livro sagrado, apoiado na escrivaninha – genuflexório, por outro lado, grandes arcos apontam para fora, em direção ao mundo que aguarda uma Palavra de verdade. O silêncio reina e é descrito precisamente pela harmonia dos arcos solitários.
No entanto, eis que dentro dessa serena calma, de sabor contemplativo e orante, alguns elementos mexem toda a cena, dando-lhe colorido e vivacidade.
Isso corresponde plenamente à vida do Santo, descrita no texto de maior confiança, chamado A Assídua. De facto, António, depois de ter vestido o traje franciscano, participou no Capítulo das Esteiras onde, pela primeira vez, viu São Francisco.
O encontro não foi idílico, porque Francisco tinha receio dos que estudavam, cujo intelectualismo se traduzia em vanglória e orgulho. O Santo de Assis apercebeu-se, porém, da humildade de António e, numa carta a ele endereçada, conferiu-lhe o título de “bispo”, atribuindo-lhe, assim, a dignidade daqueles que ensinam aos outros as supremas verdades da fé. Nessa carta (que é mais propriamente uma bilhete de resposta), ele diz textualmente:
Ao irmão António, meu bispo, o irmão Francesco deseja saúde.
Apraz-me que ensines teologia sagrada aos frades, desde que nesta ocupação não extingas o espírito de oração e devoção, como está escrito na Regra. (FF 251–252)
A carta, embora dirigida a António, é importante para a história do franciscanismo: na verdade, constitui a primeira licença concedida aos frades para ensinar teologia.
Na obra de Frei Carlos, em contraste com a imobilidade contemplativa do frade orante, o Divino Salvador que, segundo a tradição apareceu a António saindo das páginas do Livro, aparece vivaz e desejoso de educar o Santo nas verdades da fé e da encarnação.
Na escrivaninha, uma portinhola aberta permite vislumbrar a pluma e o tinteiro, convidando a escrever, preto no branco, o próximo sermão.
Na parede do fundo, uma prateleira com vários livros, alguns deles caídos, vítimas, por assim dizer, da pressa de quem retirou um deles, descuidadamente, na ânsia de o ler.
A obra, em poucas traços, expressa bem as duas dimensões fundamentais de Santo António: uma grande atração pela contemplação e pelo estudo do Mistério e, ao mesmo tempo, um grande desejo de comunicar e partilhar com os outros, como diria São Tomás de Aquino, as coisas contempladas no silêncio.
Foto da capa: Santo António e o Menino Jesus (1520-30, pintura de Frei Carlos, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa. Foto de Saiko | Wikimedia Commons.