O meu Amigo mendigo e a rosa do deserto

À memória de Inêz Fornari, a rosa do deserto

Naquele dia, eu escutava Bachianas Brasileiras, nº 5, de Villa Lobos, interpretada pela soprano Ana María Martínez. Escutar as Bachianas é como viajar no tempo – com recuos e avanços. Como sempre, cumpro o mesmo ritual, os mesmos passos que inauguram o meu dia.

Rosa do deserto que pertencia a Inêz Fornari. Foto da filha.
Rosa do deserto que pertencia a Inêz Fornari. Foto da filha.

Eis que, ao abrir a janela vi, surpreendida, entre as orquídeas da primavera, uma rosa do deserto. Em tudo, vida e exuberância. Presença, vestida de vermelho-escuro, transportando no seu centro um arco de memórias. Por alguns momentos, pousei em suas pétalas com o olhar. Ela dançou nas minhas retinas em todo o seu esplendor − na sua resistência de flor do deserto. A rosa e a música se uniam em tom de transcendência, enquanto as orquídeas seguiam o ritmo da rosa, como se estivessem em procissão.

Senti-me carregada pelo tempo e recordei uma linda tarde de sol, na qual eu ouvia as narrativas de uma grande amiga, também ela, uma rosa do deserto. Falava-me das suas lutas sociais, daquilo que ela e a família haviam passado nos tempos da ditadura militar e da sua militância em favelas brasileiras, juntamente com o seu Quixote, companheiro de lutas e sonhos, João Francisco de Souza, e Dom Hélder Câmara, bispo brasileiro conhecido pelo seu trabalho, junto às comunidades mais pobres do Brasil.

Inêz Fornari foi uma mulher de resistência, grande em tudo. Transcendente. A rosa do deserto é conhecida pela sua resistência e flexibilidade, além de beleza e exuberância. O termo rosa do deserto deriva de Selene, deusa grega da Lua, significando clareza mental, amor, atenção e tolerância. Ao ver aquela vida inusitada no meu pequeno canteiro de orquídeas, fui buscar o seu significado e este, intimamente, se relaciona com tudo que representa a minha amiga, ressurgida na metáfora daquela flor.

Poética, intensa, verdadeira e lúcida. Uma Mulher arquetípica e que reunia em si todas as mulheres do mundo – a filha, a mulher que ama, a mãe generosa, a mulher que nutre e cuida, a mulher que acolhe o mundo em seu grande ventre, a mulher que é colheita, a mulher que é palavra e revolução com a sua bandeira vermelha e livre, a mulher que carrega a força do sagrado e da fogueira, a mulher que é casa, berço e abraço. Luta.

No arco de memória que se projetava no jardim, eu sentia o abraço daquela amiga que me visitava e dizia:

— Não abandones a luta! Ainda há muito caminho a fazer. As Mulheres do Outono te esperam em cada esquina, em cada porta, em cada janela. Não desistas, resistas. A luta só começou. A luta que foi a minha vida inteira e a do meu companheiro é a flor do deserto que haverá de ressurgir sempre, todas as vezes que alguém abrir a janela do mundo.

Subitamente, eu estava em sua casa, num dia de domingo. Ela, larga, tal como era a sua casa, o seu jardim e a sua família. Recebia-nos no portão. Seus braços e mãos estendiam-se em nossa direção para nos acolher no abraço. O seu sorriso franco, a sua presença grande e simples era a poesia de domingo. Ali, nos sentávamos à roda e reinventávamos o mundo.

Pessoas que vinham de todas as partes: artistas, intelectuais, políticos, religiosos, ativistas, donas de casa e seus maridos, o pipoqueiro, a florista, o trolha e a feirante, os empregados domésticos, os favelados, os brancos e os negros, os meninos e meninas e outros sonhadores…todos à volta da mesa, existindo naquela mulher. Na voz que mais do que palavra era ação. Fazer pela mudança. O meu dia era despertado por memórias que me habitarão a vida inteira. Tenho pena de que o Atlântico tenha me levado esses domingos de casa, música, amigos, ideias de liberdade; tudo que se desenhava na simplicidade do presente e na ignorância do futuro.

Fui trazida para dentro de casa e lembrei-me que havia marcado de encontrar com o meu amigo Nuno. Encontramo-nos uma vez por mês para conversar sobre livros. Ele é um grande leitor, apreciador dos clássicos russos. Eu e ele somos íntimos de Dostoiévisk. Ele havia me pedido emprestado um livro de contos de Tchékov. Íamos discutir sobre os cotidianos retratados por este autor. Nuno é meu vizinho e, além de ser um grande leitor, é mendigo. A sua casa itinerante se movimenta na minha rua, ora perto da igreja, ora perto de uma loja ou jardim. Quando saio cedo, ele está a despertar e a abrir as janelas da sua casa imaginária. Pois bem, eu saí apressadamente para encontrá-lo.

Ele, em geral, faz questão de pagar o café. Eu digo-lhe que temos de dividir, agradeço a elegância, mas faço questão. O Nuno ri e diz-me que ele só queria ser gentil e que eu deixe de feminismos radicais. Nós rimos. Mas dividimos a conta. Ao chegar, ele não estava, achei estranho. Está sempre antes do horário marcado. A Assistência Social o havia levado para se desintoxicar. Depois, ele retorna. E retorna. A sua casa fica. Ele leva os seus poucos livros e pertences. Fiquei desolada. Um arco entre Nuno e a rosa do deserto se fez. Lembrei-me da Inêz Fornari e da sua luta. A sua revolução. Do almoço de domingo. É verdade, a luta continua e é grande. Quando o Nuno voltar lhe contarei sobre a rosa do deserto e juntos leremos o poema “Esperança”, de Maiakovski, chamado de “poeta do coração”.

Inêz era assim, como um grande coração a bater de esperança por um mundo melhor. Obrigada, Inêz, por tanto.

Foto da Capa: Svyatoslav Lypynskyy – stock.adobe.com.

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