O Inferno existe mesmo

Deixo estas palavras de outros, desejando que possam levar alguém a ver este filme. Fará bem uma ‘descida aos infernos’. Mais que não seja para encontrar como uma luz, ainda que não muito luminosa, a figura do ornitólogo Bob, a começar e a acabar o filme. Só ele consegue vislumbrar um mundo diferente.

Great Yarmouth:
Provisional Figures,
de Marco Martins,
Drama, M/14, 2022, FRA, POR, GB

Great Yarmouth:
Provisional Figures,
de Marco Martins,
Drama, M/14, 2022, FRA, POR, GB

Eu queria mesmo muito escrever – bem – sobre este filme infernal. Sim, o Inferno existe, não muito longe, não há muito tempo. E são muitos os que sofrem as suas penas. Não faltam retratos de situações semelhantes, entre nós.

Great Yarmouth: Provisional Figures, que começou por ser uma peça de teatro, é um filme realizado por Marco Martins. Diz ele numa entrevista ao Expresso (Revista, 24 de Março de 2023):

Fui pela primeira vez a Great Yarmouth, em 2016… Nessa altura tinha começado um grande afluxo de trabalhadores migrantes portugueses para Great Yarmouth, com a crise aberta, em 2008…

E mais adiante, quando o jornalista lhe pergunta: “Estamos num lugar mesmo ao lado do Inferno?”, ele responde:

Aquela realidade é muito dura, com muita falta de amor, as relações pessoais são tensas, competitivas. A ideia romântica da nossa emigração para França nos anos 60 não tem nada a ver com esta. Esta é uma emigração de desespero, de sobrevivência, já não é para construir a casa na terra, é uma emigração de grande dureza onde as pessoas se reinventam, fazem tatuagens, arranjam outros maridos… O filme é uma construção ficcional a partir daquilo a que eu não tenho acesso… E é a minha visão sobre aquilo.

“Um retrato brutal da imigração portuguesa em Inglaterra”, diz o anúncio do filme. E cito agora a jornalista Inês Nadais na sua entrevista a Beatriz Batarda, no suplemento ípsilon, do jornal Público, de 17 de Março de 2023:

A guiar-nos na descida aos infernos, uma portuguesa de meia-idade «triturada» pela experiência da imigração desqualificada, mas que na manhã seguinte às noites de line dancing e karaoke sonha com o futuro radioso em que acomodará velhinhos em hotéis com vista para o mar – já que o presente consiste em mandar compatriotas para a linha de montagem e ficar-lhes com os passaportes e boa parte do dinheiro.

E volto à entrevista da Revista do Expresso, na qual, a propósito de Tânia (a portuguesa de meia-idade), quando o jornalista diz:

“Great Yarmouth: Provisional Figures tem lá dentro Beatriz Batarda, a maior atriz portuguesa de cinema em atividade, num desempenho que pode ficar como o papel de uma vida…”, o realizador responde: “eu quis construir uma personagem que não é santa, nem claramente uma vítima, é como um escravo que se torna capataz dos escravos. É alguém que quer ascender socialmente e que para o fazer explora outras pessoas como ela… É a vítima do sistema deformada pelo sistema”.

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