O Homem Novo num Novo Mundo

Em 13 de dezembro de 1519, a armada espanhola de cinco navios, sob o comando de Fernão de Magalhães, fundeou na baia de Guanabara. Alcançara a Terra de Santa Cruz, nome que, com clara referência religiosa cristã, se designou a terra que chamamos Brasil. A abertura de novos mercados e a busca de vantagens económicas empurravam navegadores e aventureiros a empreender viagens tão arriscadas.

Entretanto, “ao lado de uma lógica material − afirma Oscar J. Beozzo − há no processo da conquista [portuguesa e espanhola] uma lógica simbólica que não deve ser esquecida, sob o risco de cairmos em um economicismo reducionista”.

É o que testemunham as grandes riquezas despendidas em monumentos religiosos, ao contrário da colonização inglesa ou holandesa. Portugueses e espanhóis, que levavam consigo as bandeiras da honra, da aventura, da religião, do rei e da pátria herdadas nas lutas pela expulsão dos mouros da península ibérica, identificaram a expansão dos países ibéricos com a expansão da fé.

“Cruz e espada” eram os instrumentos de imposição tanto do cristianismo como do império; cristandade era sinónimo de eleição divina para a expansão do Reino de Deus.

Como disse o Pe. António Vieira: “Em Portugal, os clérigos eram combatentes e os militares atuavam como ministros da causa religiosa”. Enfim, renovavam o grito que incentivara os cruzados alguns séculos antes: “Deus quer isso!”. A “vontade de Deus” é o que dá valor fundante às ações humanas e aos acontecimentos ao dar-lhes um estatuto que os eleva acima da realidade da vida cotidiana − como lembra P. Berger − e lhes garante uma legitimidade incontestável que os protege diante de escrúpulos e remorsos.

Ainda que o ideário medieval estivesse bem vivo, a Europa passava por profundas mudanças. No campo político: fortalecimento dos estados nacionais e “padroado régio”, regime pelo qual os reis dominavam a igreja. A tarefa missionária tinha um claro caráter político: “dilatar a fé e o império” era a divisa dos reis católicos de Portugal e Espanha.

Pero Vaz de Caminha, escrivão da frota de Pedro Alvares Cabral, na carta que encaminha ao rei, anuncia a descoberta da terra e lembra ao rei a missão que Deus lhe confiou:

Não duvido que eles [os indígenas], segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade… Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação.

Pero Vaz de Caminha

Vale lembrar que em 1517, portanto em época da expansão marítima europeia, Lutero desafia a doutrina oficial e as determinações da Igreja. A venda de indulgências precipitou a rejeição a uma igreja corrupta e contestada por seus fiéis, mas foi neste período, conhecido como Renascimento, que se instaurou uma nova visão do homem em relação a si mesmo e em relação ao mundo.

O “humanismo”, sem ainda rejeitar o teísmo, tem como manifesto programático as palavras que o humanista Pico della Mirandola coloca na boca de Deus:

Eu não lhe dei, Adão, nem um lugar predeterminado, nem um aspecto particular, nem quaisquer prerrogativas, a fim de que você possa torná-los e possui-los através de sua própria decisão e de sua própria escolha.

in Oratio de Hominis Dignitate

É também uma nova visão religiosa do homem: ao criar o próprio projeto de vida, o homem é colaborador de Deus, não simples instrumento.

Povos, culturas, costumes, religiões tão diferentes abriram os olhos dos europeus para a diversidade humana; mais difícil foi a aceitação dessa diversidade: grande demais era a certeza de suas verdades. Mesmo assim, apesar de o encontro de culturas em muitos casos ter características de choque de culturas, e não de troca, foi abertura para a “modernidade”. Até no campo religioso, a aceitação do “diferente”, hoje incontestável, tem início na globalização encetada pela expansão comercial marítima do século XV e XVI.


Foto da capa: Figurantes vestidos como soldados espanhóis nas festas do Menino Jesus, em Cebu, nas Filipinas, onde morreu Fernão de Magalhães, que aqui terá erigido a chamada Cruz de Magalhães.

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