Na sequência do grande drama que a pedofilia tem sido para a Igreja, aparece, necessariamente, o problema do clericalismo. Na sua carta ao povo de Deus, o Papa Francisco aponta-o como uma das causas:
O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma rutura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso, é dizer energicamente não a qualquer forma de clericalismo.
Mas não é esta a primeira vez que o papa se refere a este profundo mal da Igreja. Na célebre saudação aos cardeais e colaboradores da Cúria romana, a 22 de dezembro de 2014, não falando expressamente no clericalismo, o papa Francisco identifica de forma acutilante os 16 pecados dessa forma de estar na Igreja.
E não podem esquecer-se as referências feitas na Evangelii Gaudium, no nº 90, ao mundanismo que se alimenta
sobretudo de duas maneiras profundamente relacionadas. Uma delas é o fascínio do gnosticismo, uma fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos. A outra maneira é o neopelagianismo autorreferencial e prometeico de quem, no fundo, só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado.
O flagelo do clericalismo
Já vai longo o tempo de citação, mas gostaria ainda de recordar o discurso do Papa Francisco no início do Sínodo sobre as vocações e os jovens:
É preciso, por um lado, superar decididamente o flagelo do clericalismo. De facto, a escuta e o abandono dos estereótipos são também um forte antídoto contra o risco do clericalismo, ao qual uma assembleia como esta, independentemente das boas intenções de cada um de nós, está inevitavelmente exposta. O clericalismo nasce duma visão elitista e excludente da vocação, que interpreta o ministério recebido mais como um poder a ser exercido do que como um serviço gratuito e generoso a oferecer; e isto leva a julgar que se pertence a um grupo que possui todas as respostas e já não precisa de escutar e aprender mais nada, ou então finge escutar. O clericalismo é uma perversão e é raiz de muitos males na Igreja: destes devemos pedir humildemente perdão e sobretudo criar as condições para que não se repitam.
Hoje torna-se evidente que algo de profundo tem que mudar na estrutura orgânica da Igreja para ultrapassar o clericalismo que não é apenas dos padres e dos bispos. A estrutura clerical informa também muitos dos leigos, habituados a serem sempre meros colaboradores dos pastores e não conscientes da pertença a um povo sacerdotal mais que a um povo de sacerdotes.

O regresso dos símbolos do poder
A mudança da organização eclesial pode, no entanto, ser retardada pelos preocupantes sinais de fundamentalismo e tradicionalismo emergentes em alguns setores da Igreja. O regresso dos símbolos do poder está muito presente. E não apenas nos sinais de voltar ao uso das vestes eclesiásticas e no revivalismo de fórmulas ultrapassadas na liturgia, mas também na visão neoconservadora de muitos movimentos, ditos de evangelização, mas que na sua visão neoconservadora estão mais preocupados com o futuro da instituição eclesial do que com as pessoas substituindo facilmente a missão por marketing.
Mais do que refontalizar a vida cristã nos seus momentos primeiros com a frescura da proximidade do Senhor, em comunidades de oração e partilha prefere-se exaltar a visão duma igreja senhora do mundo, um poder ao lado de outros poderes (sociedade perfeita, na velha definição de Igreja).
Mas tudo isto não pode deixar de ser um estímulo à esperança e ao futuro. Há algo de novo que vai emergindo. “O sol das manhãs vindouras” está já a romper e a iluminar o coração de muitos que não desistiram. A reforma das instituições eclesiais, dum modo especial a Cúria, a visão sinodal da Igreja, o povo de Deus que através de comunidades e de alguns responsáveis vai desafiando e urgindo uma Igreja sal e fermento, elemento significativo da transformação do mundo.
A es-CLERO-se da Igreja
Termino com a acutilante definição do clericalismo do Núncio Apostólico Franco Coppola na Assembleia da Conferência Episcopal do México:
Uma doença que representa a es-clero-se da Igreja; um sagrado “despotismo iluminado” dos que pensam e decidem; faço e desfaço, organizo e desorganizo, ponho e disponho, aprovo e desaprovo, incluo e excluo… A missão dos porta-vozes do clericalismo consiste em criar um público passivo e obediente, não colaborador nem participante na tomada de decisões; o que pretendem não é edificar uma “Igreja doméstica” mas sim uma “Igreja domesticada”.
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