A minha avó tinha uma betoneira vermelha.
No quintal da casa onde os meus pais, o meu irmão e eu passávamos as férias, o chão era de cimento, meio irregular. As paredes estavam nuas, da mesma cor do cimento, meio cinza, meio castanho. Na verdade, era “um pátio mal-amanhado”, entre as traseiras de uma casa de dois andares (com lojas no rés do chão, e habitação no primeiro piso) e um barracão de cimento, frio e pouco iluminado, onde se guardava lenha, havia um velho lagar, alguns trastes e muitas teias de aranha.
Lá ficavam também as bicicletas em que nós miúdos andávamos para cima e para baixo, no quintal que nos parecia tão grande como uma autoestrada. Na estilosa bicicleta de selim longo e vermelho, aprendemos a andar sem rodinhas depois de vários joelhos esfolados e de muitas hesitações.

Nas paredes nuas das traseiras da casa, fizemos desenhos a giz e balizas imaginárias.
A betoneira estava ao fundo do quintal (não é nada estranho chamar quintal àquele espaço inóspito mas onde o meu irmão, os meus primos e eu vivemos algumas das maiores aventuras da infância) e às vezes trabalhava, rodava, rodava, a massa cinzenta lá dentro às voltas, fazendo formas regulares.
Chegavam os homens e sob as ordens da minha avó iam fazendo, cada verão, uma casa de banho de serviço no barracão, uma casinha para guardar as coisas dos meninos, um forno para cozer o pão, um espaço para os baloiços. Os baloiços eram uma estrutura de ferro robusta, de cor bordô, correntes bem grossas e duas tábuas de madeira pesadas a fazer de assentos. Acho que seriam hoje uns baloiços impossíveis. Mas naqueles anos foram a loucura.
Houve acrobacias, concursos de quem andava mais alto, competição de saltar do baloiço em andamento e, claro, algum galo na cabeça.
Antes de ouvir o barulho da betoneira a funcionar, eu sentia o cheiro do cimento. É um cheiro fresco e húmido. E é um cheiro de promessa: alguma coisa vai acontecer. Espreitava da varanda, descia as escadas e vinham os homens, os sacos de cimento, de areia, a água. Às vezes, podíamos experimentar a colher de pedreiro e perceber que aplicar e alisar o cimento é uma arte e não um gesto do instinto.
À hora do descanso dos homens a minha avó chegava com umas buchas e umas garrafas de groselha: o açúcar sem taninos que comprometessem a boa execução das tarefas.
Arranjaram-se os muretes que desenhavam o jardim junto à casa, melhoraram-se as capoeiras, fortaleceram-se os muros, repararam-se frestas. Predominava o sentido prático dos trabalhos e pouco sentido estético; aliás, na linha de muita terriola por este país adentro, nomeadamente no centro, que nos anos 1980 praticava aquela mistura insuperável de alumínio nas portas e janelas, com as paredes exteriores das casas deixadas nuas, com o cimento ao léu.
Ao longo dos anos, o cheiro do cimento encheu os nossos verões. Porventura será mais certo dizer que o cheiro do cimento perfumou as memórias da minha infância. Só o comecei a notar anos mais tarde.
O cheiro a fresco e a húmido do cimento da esperança
Os cheiros são poderosos repositórios de memórias. Quando elas são felizes, guardam saudades, aconchegam experiências, confortam os corações. A betoneira da minha avó era um objeto feio, abandonado no quintal que às vezes ganhava vida.
Aquele movimento centrífugo era um movimento de vida e de expetativa. O que vai construir este cimento? O que vai unir esta massa? Quem vai saber a medida exata de areia e água? Quem vai pegar na colher e quem vai orientar o trabalho?
Estas não são perguntas do passado, são perguntas para o hoje. As respostas hão de vir hesitantes ou decididas, mas sempre acompanhadas desse cheiro a fresco e a húmido do cimento, da esperança.
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