Ler a encíclica (duplamente) franciscana com sentido de abertura, de vastidão, de amplitude, de largueza de horizonte e de generosidade do coração…
O combinado com a equipa da revista Mensageiro de Santo António era preparar, sob a coordenação do Juan Ambrósio, uma abertura sobre a Fratelli Tutti. E quase como um doce vício linguístico pôs-se-me a dúvida acerca da preposição: sobre ou para? Curiosamente, nos mails trocados entre nós usaram-se ambas as regências.
Ademais, detive-me um pouco a pensar na palavra abertura. Dos seus vários significados, destaco a ideia de começo, de prelúdio, como numa sinfonia, por exemplo, e também a ideia de amplitude, contrária à de fechamento.
Afino a questão inicial: abrir sobre ou para a Fratelli Tutti? Acrescento mais uma preposição (e não esgota o “jogo”): abrir ante a Fratelli Tutti.
O convite destas páginas de O Mensageiro de Santo António é evidente: ler a encíclica (duplamente) franciscana com sentido de abertura, de vastidão, de amplitude, de largueza de horizonte e de generosidade do coração.
Um convite a que nos debrucemos sobre as palavras do Papa, a que escancaremos os nossos espíritos à entrada destas interpelações de Francisco.
A abertura é uma atitude nossa no acolhimento da encíclica, mas será porventura ainda mais uma consequência da sua leitura. Sentirmo-nos todos irmãos não é apenas uma expressão natalícia, um cristianismo embalado por frases banais, uma pseudo-justificação pragmática para gestos de assistencialismo, entre outras oportunidades. Sentirmo-nos todos irmãos é fazer-nos sair, ir ao encontro, reequilibrar os laços, é um desafio exigente (s)e mobilizador.
Se, como indivíduos e como comunidade, como grupo social, como cidadãos, não agirmos neste sentido da fraternidade, da proximidade, não fazemos nada de novo. Ficaremos sempre fechados nos mesmos contextos, no mesmo conforto, na mesma satisfação sobre as metas alcançadas. Entenda-se-me, não menosprezo as conquistas e o caminho percorrido, mas é preciso algo de novo.
Na sua coluna do jornal Público, o teólogo dominicano Frei Bento Domingues escreveu sobre a Fratelli Tutti: “Nada de novo. Tudo novo.” (11-10-2020). Esta frase, de certa maneira evidente (como só se revelam as sínteses bem feitas), pareceu-me logo não só uma leitura da encíclica como uma interpelação direta a mim, como sujeito, num aqui e agora. Tudo é novo.
A exigência, a urgência, o fim da centralidade das palavras (há uma Palavra central) e o momento da ação amorosa. Gosto muito da inusitada junção do adjetivo eficaz ao nome amor: “O amor eficaz” (FT 183 e ss).
Numa linguagem empresarial, usaríamos nomes como capacitação ou formação para falarmos de iniciativas de ensino-aprendizagem de técnicas de excelência e partilha de melhores práticas com vista ao aumento da produtividade.
Para o nosso mundo, a precisar de consolo e de cura, o amor é a “técnica” que nos é apresentada: “[…] a caridade pode construir um mundo novo, porque não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos.” (FT 183).
Esta aparentemente estranha ideia de eficácia no amor é, afinal, um dos apelos mais importantes que o Papa tem feito, o “nada novo” sobre que escreveu Frei Bento. O amor é performativo e o fim é o bem do outro.
A centralidade do amor é fundamental; não só nas nossas famílias, mas na sociedade, num mundo aberto a todos, na ação política, que é cerne desta encíclica.
Regresso ao verbo abrir, agora sem necessidade da preposição. A caridade é uma chave que abre portas. Certamente a porta da esperança. E nós “somos feitos de esperança”.
Foto da capa: Parábola do Bom Samaritano, ilustração nos Evangelhos de Rossano. Os Evangelhos de Rossano são um códice contendo os Evangelhos de Mateus e Marcos escritos em unciais finos de prata e ouro sobre pergaminho roxo. Originários da Síria, sec. VI, encontram-se na Biblioteca da Catedral de Rossano, Itália. Foto Michele Abastante | Commons Wikimedia.