Nos confins da Europa

“Ninguém quer saber de nós. Se a Turquia anexasse o resto da ilha, ninguém nos viria defender”, disse, ao fim de cinco dias de estadia, o balconista do hotel a uma das duas amigas que viajaram comigo.

Bem, é fácil duvidar de uma afirmação tão dramática se estivermos longe. O Chipre (grego) é, afinal de contas, parte da União Europeia. Contudo, quando não se está longe, mas mesmo no coração da cidade de Nicósia, percebemos que tal possibilidade não é assim tão improvável. Afinal de contas, a última invasão deu-se em 1974 e, embora o Chipre do Norte apenas seja reconhecido pela Turquia, a ocupação mantém-se, sem final à vista. Existem, com toda a certeza, outras prioridades políticas.+

Catedral de Santa Maria (interior), com bandeiras gregas. Foto de Inês Bolinhas.
Catedral de Santa Maria (interior), com bandeiras gregas. Foto de Inês Bolinhas.

Era domingo, dia 25 de março. Caminhando juntas para o local do colóquio em que eu ia participar, vimos uma parada: rapazes e raparigas desfilavam orgulhosamente com estandartes, uns com a bandeira grega, outros com a bandeira cipriota, outros ainda com ícones de Maria com o Menino. A banda tocava com convicção. Celebrava-se, no mesmo dia e no mesmo desfile, a Independência Grega e a Anunciação à Virgem.

Mais tarde, ouviu-se a chamada do muezim para a oração. Na verdade, ela é ouvida cinco vezes por dia, propagada por potentes altifalantes. A outrora Catedral de Santa Sofia, do lado turco e bem perto da fronteira, espalha o som pelas duas metades da cidade cindida, fazendo-nos quase duvidar, por segundos, da parte de Nicósia em que temos os pés. Se os ouvidos nos podem enganar, os olhos não deixam margem para dúvidas.

Na metade turca, as mesquitas (muitas delas, antigas igrejas e catedrais) são encimadas por duas bandeiras: a da Turquia e a do Chipre do Norte. Na metade grega, vemos algo estranho nas igrejas cristãs para quem vem de um país de matriz católica: bandeiras nacionais – da Grécia. Pode a casa de Deus ter bandeiras nacionais? Troquei impressões com um colega congressista, cipriota grego, especialista em História, que concordou prontamente. Também ele preferiria tirar as bandeiras, já que a casa de Deus deve ser uma para todas as nacionalidades e que o povo de Deus é um em toda a parte. Contudo, através delas, a Igreja Ortodoxa de Chipre reclama a sua herança civilizacional e diz a que mundo quer pertencer.

A metade grega do Chipre é ainda Europa

Mas uma Europa que se vê obrigada a viver com metade da capital ocupada. Passamos a fronteira e, se as casas são as mesmas, tudo o resto muda, não só política e religião: muda a culinária, mudam as lojas, muda o modo de estar na rua. Escapam os numerosos gatos, sempre idênticos a si mesmos; perto de todos os cafés e restaurantes, são indiferentes à linha implacável que corta a Rua Ledra. Talvez eles sejam o reduto da calma. Não conhecem as histórias dos familiares que desapareceram e não foram encontrados. Nada sabem das famílias, turcas e gregas, que tiveram de fugir para as suas atuais metades, deixando tudo para trás. Estão por toda a parte e oferecem simpatia a naturais e turistas.

Mas as pessoas não são gatos…

E, assim, Chipre grego e Chipre turco são como água e azeite – não se misturam, mesmo quando os cidadãos passam a fronteira. Abaixo da Turquia, em frente à Síria, já perto de Israel, o Chipre grego persiste teimosa e corajosamente na fé cristã, diretamente recebida de São Paulo e de São Barnabé. Isolado, sob ameaça sempre iminente, não cede.

Gostaria de escrever outras palavras

Pilar onde São Paulo terá sido açoitado antes de converter o procônsul romano Sérgio Paulo, em Pafos. Foto de Inês Bolinhas.
Pilar onde São Paulo terá sido açoitado antes de converter o procônsul romano Sérgio Paulo, em Pafos. Foto de Inês Bolinhas.

Releio as linhas que escrevi atrás e quase que me arrependo delas. Tendo em conta o atual contexto cultural, civilizacional e político em que vivemos, admito que gostaria de escrever outras palavras e outras considerações, que alimentassem a confiança no encontro com a civilização islâmica. Teria o maior gosto em fazê-lo.

No entanto, não posso, porque não foi isso que vi e vivi. Foi preciso participar num congresso no Chipre para ouvir dizer, nas conversas de intervalo entre sessões, que ainda estava por deglutir a perda de Jerusalém bem como da Península Ibérica, para judeus e cristãos, respetivamente.

Pobre Chipre. Dez mil anos de história, dez mil anos de invasões. A ilha que, segundo o mito helénico, viu nascer Afrodite, deusa do amor e da beleza, tem conhecido tantas vezes o seu oposto. Mas não desiste, não baixa os braços – e essa é a maior beleza e porventura uma lição. De facto, é muito fácil ser-se cristão em Portugal.

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