Apesar de uma carreira já muito premiada Nomadland – Sobreviver na América nunca será um filme consensual. E cada um vê-lo-á de um ponto de vista diferente, como sempre. Sem ser arrebatador – a não ser talvez a personagem de Fern, a única actriz presente – coloca-nos algumas questões pertinentes. Diz-nos sobretudo que, a partir de uma certa altura da vida e em certas situações, não é preciso muita coisa para viver e ser feliz: basta uma carrinha e uma estrada que o resto há-de encontrar-se.
Creio por isso que o filme não é fundamentalmente – ainda que isso também esteja presente e seja até a motivação primeira do livro que lhe deu origem – uma denúncia do capitalismo e dos pobres que ele gera. Aquilo que chama a atenção é perceber como todas aquelas pessoas nómadas fizeram aquela opção de vida. Cada uma pelas suas razões. Cada uma fugindo ou procurando alguma coisa. Significativo a este respeito é um breve diálogo entre Fern e uma adolescente que tinha sido sua aluna, quando se encontraram num supermercado. Esta vinha acompanhada pela irmã e pela mãe e percebia-se a ‘pena’ com que olhavam Fern por saberem das dificuldades que estaria a passar. Ficando um pouco para trás, a antiga aluna comenta com Fern que ‘a mãe dizia que ela era uma ‘homeless/sem abrigo’. Mas Fern responde que não é homeless mas sim ‘houseless/sem casa’, o que não é a mesma coisa, concordam ambas.
De facto, o que o filme põe diante de nós é uma série de pessoas que escolheram deixar a sua casa, seja porque já não fazia sentido continuar a viver naquele lugar, seja porque lhes seria difícil continuar a pagá-la, seja porque acreditavam que seriam mais felizes ao viver daquela maneira. E é aqui que o filme se torna bastante sedutor para alguns e outros acharão serodiamente romântico. A verdade é que talvez seja possível viver com menos, não ser escravos do trabalho e da necessidade/obrigação de acumular. Pelo menos a partir de determinada altura da vida. A maior parte das pessoas que vamos conhecendo são mais velhas e querem apenas sentir-se livres, estar em contacto com a natureza e avançar serenamente para a morte. Fazem uns pequenos trabalhos sazonais que lhes permitam ter o mínimo para comer, meter combustível na carrinha e viver uma vida simples.

Nascido de um livro/reportagem da jornalista Jessica Bruder, ao longo de três anos, Nomadland é um retrato de uma realidade que atravessa toda a história da América e que é uma espécie de marca do país desde a sua fundação: a deslocação das populações e a itinerância atrás de uma vida melhor, naquelas paisagens imensas e abertas (impossível não lembrar As Vinhas da Ira, por exemplo, ainda que num tempo e perspectivas muito diferentes), o filme balança entre o documentário e a ficção. Talvez seja esta uma das suas limitações.
A personagem interpretada por Frances McDormand serve precisamente para ligar as outras pessoas, reais, permitindo-nos conhecer as suas histórias, os seus dramas e os seus sonhos. Liberdade é seguramente uma palavra importante por trás do filme. Cito a autora:
Toda a gente tem uma ideia diferente do que significa ser livre e para muitas pessoas na estrada a ideia de uma casa tradicional tornou-se tão impossível que começaram a senti-la como armadilha. Não há uma liberdade perfeita. A liberdade perfeita é outro mito, porque se estamos na rua, há muitos desafios, muitas coisas que nos podem tirar da estrada. Se a carrinha se estraga e não a conseguimos arranjar, não ficamos apenas sem transporte, mas sem casa.
ípsilon, Público, 16 de Abril
Nomadland – Sobreviver na América,
de Chloé Zhao, Drama, M/12, EUA e Alemanha, 2020. Óscares 2021: Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Atriz.
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