Há dias fui às compras numa mercearia do bairro do Condado, em Marvila. A fila não era muito comprida. O dono da loja saia cada 30 segundos e mandava entrar uma ou duas pessoas.
O João, um senhor da minha idade que conheço há 25 anos, quando me viu veio ao meu encontro todo feliz: “Há quanto tempo que não vejo o frei!”. E deu-me um toque com o cotovelo.
Eu, conhecendo o estado de saúde do João, não me senti tão à vontade com o toque, mas alinhei na conversa. Pouco depois, quando foi a minha vez, entrei na loja e, enquanto andava a escolher maçãs e peras, toquei distraidamente num senhor que estava à minha frente. Ele virou-se para mim olhando-me com cara aborrecida. Apressei-me a pedir desculpa pelo toque involuntário.
O relato do Evangelho daquele dia falava do encontro ao pé do sepulcro entre Jesus e Maria Madalena. Maria chorava e ao ouvir Jesus pronunciar o seu nome, reconheceu o Mestre e queria tocá-lo, abraçá-lo, retê-lo. Mas Jesus repreendeu-a, dizendo: “Não me detenhas…”. São Jerónimo traduz, em latim, esta exclamação com a famosa expressão: Noli me tangere, que à letra significa “não me toques… nem ao de leve!”.
Muitos artistas celebres pintaram esta cena: de Bronzino a Brueghel, de Duccio, Dürer e Giotto a Rembrandt, Rubens e Ticiano, e tantos outros.
Habituados aos toques e aos abraços, nossos, no dia a dia, e de Jesus, nos relatos evangélicos – pensamos em Maria que lava e perfuma os pés do Senhor, em Tomé que lhe toca as feridas, na mulher doente há doze anos que “ao de leve” lhe toca o manto – custa-nos entender e viver esta “distância canónica” a que somos obrigados. Não estávamos acostumados, não faz parte da nossa cultura, mas acabamos para nos render simplesmente por medo.
Contudo, o Noli me tangere de Jesus, não nasce do medo de ser tocado, não é uma forma de autoproteção ou de afastamento, mas um gesto de ternura e de amor.
Jesus sabe que o seu corpo ressuscitado não pode ser tocado. O que Maria Madalena pode fazer não é tocar o corpo de Jesus, mas sim a sua ressurreição. Jean-Luc Nancy, escreveu um livrinho intitulado Noli me Tangere, onde afirma que, agora, ao pé de Jesus ressuscitado, Maria Madalena “não deve tocar, mas ser tocada”. Mais do que “reter” Jesus, tem que O anunciar com alegria. E foi o que ela fez, comunicando aos discípulos: “Eu vi o Senhor!”.
Neste tempo pascal, de encontros com o Ressuscitado, somos convocados a descobrir um novo sentido na falta de toques e de abraços? Não já por repugnância ou medo, mas sim por amor e com ternura, numa antecipação da eternidade de Deus, quando poderemos tocar e abraçar a Sua glória.
Foto da capa: Noli me tangere (Não me toques), Ticiano (1514), National Gallery, Londres | Wikimedia Commons.