Em qualquer presépio (1), tão imprescindíveis quanto o bebé, são o burro e o boi. Do cantinho que lhes é reservado, um de cá e outro de lá, ou os dois no fundo, olham, prestam atenção em tudo, não falam nada. É que naquela noite toda especial, quando nasceu a criança, os dois estavam a postos e foram testemunhas do acontecido. Todos concordam, então, que não são simples enfeites, são essenciais.
O burro era propriedade de José. Tinha carregado Maria lá do Norte, de Nazaré, até Belém, cidade do Sul. A moça estava grávida e não aguentava longas caminhadas. É o que contam.
O boi já era de casa, morava no estábulo. Estava naquele lusco-fusco que antecede o sono dos justos, a mente vagueando por campinas verdes gordas de feno, ruminava gostoso, quando entraram, quase sem barulho, dois desconhecidos e um burrico. Foi mais o ranger dos gonzos a trair aquela intrusão; moviam-se em silêncio, falavam sussurrando, como a pedir desculpas por estarem incomodando o tranquilo ruminar. Adivinhava-se: pobres e educados.
O burrico foi acomodado junto ao boi. Cumprimentaram-se abanando as orelhas, mas a conversa não foi adiante: línguas diferentes e, sobretudo, o mundo asinino e o bovino, não comunicantes, impediram trocas de ideias. Mas o que aconteceu logo depois, algo inimaginável, irmanou-os para sempre em todos os presépios do mundo.
A criança nasceu. Os pais ficaram nervosos, como todos os pais naquelas circunstâncias, mas conseguiram, finalmente, enrolar o menino nas fraldas e o colocaram na manjedoura forrada de feno. Entre uma mordida na palha e uma ruminação, o boi e o burro tiveram a mesma reação: acenaram com a cabeça e, silenciosamente, deram os parabéns. Até aqui, nada especial: uma criança aparecer no mundo não é algo estranho. Sempre nasceram, sempre vão nascer filhotes de homem, como sempre houve e sempre vai haver bezerrinhos e filhotes de jerico.
De repente, entretanto, algo inesperado: um brilho luminoso, uma música suave, os ares se mexendo, pastores chegando com presentes, uma troca insistente de olhares maravilhados e palavras de admiração. Desde então, os dois estão quebrando a cabeça para descobrir o que aconteceu de verdade. Aquele ar manso e grave do boi esconde uma vontade apaixonada de desvendar o enigma de uma noite em que foi testemunha de algo privilegiado, mas que ninguém sabe, ou quer, explicar.
O burro, de tanto pensar naquela noite, tornou-se filósofo. Olhar triste, não tem tempo para brincadeiras. Anda pelas ruas da cidade alheio a tudo o que ocorre em volta, como o colega filósofo Immanuel Kant. Seu objetivo na vida é encontrar resposta à pergunta: “Qual a razão de tudo que aconteceu naquela noite, no estábulo? E por que tudo o que aconteceu tem a ver com um casal de pobres e com uma criança que nem berço tinha e tiveram de colocá-la numa manjedoura forrada com o feno que pediram emprestado ao companheiro”?
De vez em quando, dando uma olhada acima do chão, vê gente carregada de embrulhos, vê árvores iluminadas e luzes penduradas entre as casas. Acontece sempre perto do aniversário daquela noite: as pessoas são um pouco mais alegres, se cumprimentam, tudo fica mais bonito. Será uma lembrança ou – quem sabe – uma celebração daquela noite? Será que a noite em que ele foi testemunha do nascimento da criança – e da alegria do casalinho tímido, no meio daquela pobreza – foi uma noite especial, uma noite que inaugurou um novo tempo?
Dá vontade de perguntar a alguém que passa carregado de pacotes coloridos: “Meu amigo, por que tudo isso?”. E se o fulano não souber responder…?
Melhor ficar com essa pergunta na cabeça, enfiada entre as orelhas. Enquanto puxa a carroça, sobra tempo para pensar. E sobra tempo para viver a sensação daquela noite, a suave sensação de presenciar algo maravilhoso acontecer.
Viver carregando um doce mistério pode iluminar não só uma noite; pode iluminar uma vida.
(1)
A tradição do Presépio

O presépio do Natal é uma imagem tradicionalmente associada a S. Francisco. O que é que, efetivamente, aconteceu em 1223, três anos antes da morte do Santo?
Quinze dias antes da festa do Natal, Francisco foi ter com um senhor da aldeia de Greccio, no vale de Rieti, a quem manifestou o desejo de celebrar a noite de Natal com grande solenidade, pedindo-lhe para preparar tudo o que pudesse dar uma ideia do nascimento de Jesus em Belém. Fizeram-lhe a vontade.
O mais importante para Francisco era pôr em relevo a humildade e a pobreza, imaginar Jesus “tal como ele estava”, em absoluta privação de tudo, no presépio da gruta de Belém. Pediu também ao proprietário de Greccio que convidasse para a solenidade toda a gente da povoação e dos arredores.
O presépio de S. Francisco reduzia-se ao que ele, havia muito tempo, trazia no coração: celebrar de forma visível e impressionante a humildade do nascimento do Filho de Deus, o mistério da Encarnação.
E para esse homem de Deus, cujo sonho era viver a pobreza de Jesus, contemplar a pobreza dum presépio ou curral de gado equivalia a contemplar o próprio Menino de Belém.
A noite de Natal representou para ele o triunfo da simplicidade, da pobreza e da humildade. Greccio transformou-se em nova Belém: o Menino Jesus esteve lá presente na fé e no amor de Francisco.
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