Na rota dos Patronos da JMJ Lisboa 2023 que estamos a percorrer no Mensageiro de Santo António, não podíamos silenciar, neste mês de junho, o santo mais popular dos Santos Populares: António de Lisboa.
Quando António – de Lisboa, de Pádua, de Coimbra – foi apresentado como um dos patronos da JMJ achei a escolha óbvia. Contudo, veio-me logo uma pergunta provocatória: Santo António doutor do Evangelho e arca do Testamento; Santo António, milagreiro nas artes figurativas e na devoção popular, o que diz a um jovem de hoje? Talvez pouco ou nada!

Por qual razão Santo António é tão ilustre na devoção popular e tão “desconhecido” na sua verdadeira história humana? De facto, sabemos pouco sobre António. As informações históricas não são bem documentadas e precisas como acontece no nosso tempo. O próprio António complica a nossa procura do seu verdadeiro perfil, com a extrema modéstia com que silencia a história da sua vida e do seu mundo interior. Não temos um “testamento” de António, nem confidências pessoais ou referências à sua terra natal, à família e aos companheiros de viagem. Nada.
Por isso, escolhi um género literário um pouco ousado para este artigo: obrigar Santo António a falar na primeira pessoa para se apresentar ao leitor e, em particular, aos jovens que terão acesso a este texto.
Deste modo, poderão descobrir no curriculum vitae deste santo, aquela que o Papa Francisco chamou de “santa inquietação” que atravessou toda a sua vida, levando-o a procurar sempre algo mais na sua entrega a Deus e aos irmãos… tornando-se um incansável pregador itinerante do Evangelho e um irmão (frade) próximo e ao serviço dos mais pobres do seu tempo.

“Eu, António”. O meu curriculum
Chamo-me Fernando. Nasci em Lisboa, Portugal, há oito séculos, provavelmente em 1195, de uma nobre família.
No fim dos primeiros estudos, ainda adolescente, tinha quinze anos, decidi ingressar no mosteiro de São Vicente de Fora, a poucos passos de Alfama, o bairro em que cresci. Na comunidade dos cônegos regrantes de Santo Agostinho, quis perceber qual era a minha vocação.
As frequentes visitas de familiares e amigos atrapalhavam o meu percurso vocacional, por isso, passados dois anos, pedi para ser transferido para Coimbra, no mosteiro de Santa Cruz. Tendo encontrado aqui a paz, dedico-me ao estudo da Sagrada Escritura, que me atrai de maneira particular. São anos preciosos da minha formação, pontuados pela oração coral e pessoal. Aos vinte e cinco anos fui ordenado sacerdote.
Poucos meses depois da minha ordenação sacerdotal, em 1220, um acontecimento marcou a minha vida: vi chegar os corpos de cinco frades menores, decapitados em Marrocos, os mesmos que, de passagem por Coimbra, eu próprio tinha acolhido.
Já há muito tempo que andava à procura de “algo mais” para o Senhor: o exemplo destes frades foi para mim um sinal. Peço para ser frade menor, com a condição de ser enviado em missão. Vencidas as resistências da minha comunidade de Santa Cruz, sou acolhido com alegria pelos frades da ermida dos Olivais, que me atribuem o novo nome de Frei António, em honra de Santo Antão do deserto, a que era dedicado o ermitério ali existente.
Seguiram-se dez anos intensos de vida franciscana no claustro do mundo.
Na colina dos Olivais, ansiava ser missionário e mártir, ao jeito daqueles frades simples, evangélicos e jubilosos que tinha acolhido na hospedaria de Santa Cruz.
No início de 1221, deixo para trás Coimbra, assim como tinha deixado Lisboa, chegando a Ceuta, na África magrebina.
A aventura de Marrocos foi um desastre: fiquei acamado com malária e o meu “sonho missionário” foi por água abaixo. Reembarcado para regressar a Portugal, uma terrível tempestade atirou o navio na direção oposta indo parar à Sicília. Primeiro a doença e depois a viagem aventurosa afastaram-me, quer da terra islâmica, quer da minha terra natal.
Da ponta da península italiana, uma vez recuperado, parto para o capítulo, a assembleia geral dos frades que Francisco de Assis, nosso fundador, convoca a cada três anos. No mês de maio de 1221, pelo Pentecostes, chego a Assis para o Capítulo das esteiras, uma espécie de grande Jornada da Juventude dos frades menores em que pude conhecer Francisco. Eu, António, sou apenas um jovem frade recém chegado da ponta da Europa, um emigrante desconhecido.
Quando os frades regressam para as suas terras de origem ou de missão, frei Graziano, superior da Romanha, leva-me consigo, confiando-me à ermida de Montepaolo, Forlì, onde ao longo de dois anos faço de tudo: celebrar a missa, atender confissões, lavar a loiça, pedir esmola… Como Francisco, apesar dos meus títulos académicos, procurava viver a altíssima pobreza:
muitas vezes pensava na pobreza de Cristo e da sua bendita Mãe… nada levando comigo quando viajava, atravessava terras e províncias em pobreza absoluta, semelhante a um que no mundo se sente peregrino e estrangeiro…
Rigaldina, cap. 7
Em 1223, por ocasião de uma ordenação sacerdotal, na cidade de Forlì, pedem-me para pregar: falo de Jesus, baseando-me nas Escrituras. O meu futuro está marcado: recebo a obediência de pregar na Romanha, terra minada pela heresia, especialmente a dos cátaros.
Convido todos à penitência e à caridade, exorto os meus irmãos bispos e sacerdotes a viverem uma vida coerente com o que proclamam e peço aos ricos que desistam de enriquecer à custa dos pobres.

Percebo que para evangelizar, não basta o exemplo, é preciso também formação: com a permissão de Francisco, em Bolonha, crio um estudo teológico para a formação dos frades.
De 1224 a 1227, a obediência leva-me para o sul de França, onde muitos cristãos passaram para a heresia albigense. Prego em Montpellier, Arles, Toulouse, Limoges, Bourges.
Em 1227, realiza-se um novo capítulo em Assis, após a morte do nosso pai Francisco (+ 1226), onde me fizeram ministro provincial do norte da Itália. Além da evangelização e do estudo, agora devo visitar as fraternidades dos frades. Foram anos intensos e exaustivos de itinerância e pregação: Milão, Como, Val Camónica, Cremona, Bréscia, Bérgamo, Varese e Mântua são as etapas principais da minha peregrinação.
Em 1228, estabeleço a minha residência em Pádua, onde cresce uma afeição particular com os habitantes desta cidade que, carinhosamente, me chamarão “António de Pádua”.
No capítulo geral de 1230, peço para ser dispensado do meu serviço como ministro provincial.
Em 1231, na Quaresma, dediquei-me totalmente à pregação contínua, insistindo energicamente no sacramento da reconciliação. Pádua responde de forma comovente, com frutos de verdadeira conversão a nível social.
Tendo celebrado a Páscoa, a convite dos frades, mudei-me para o tranquilo convento de Camposampiero, a poucos quilómetros de Pádua.
Numa cela especial, construída sobre uma imponente nogueira, pretendo terminar os Sermões, comentários litúrgicos dos domingos e festas, para uso dos meus confrades enviados a pregar.
Aí vem a obediência final: a irmã morte. Peço para deixar este mundo no meu querido convento de Pádua. No limiar da cidade, como Francisco, morro cantando dirigindo-me docemente à Virgem Maria. É o dia 13 de junho de 1231. A minha vida terrena encerra aos trinta e seis anos.
Oito séculos depois quem é António?
Um jovem inquieto que ansiava ser missionário e mártir?
Um frade apaixonado por Deus e pelos irmãos?
Foto da capa: Santo António, estudante em Coimbra. Continua a viver ao longo dos séculos, reinventando-se ciclicamente.
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