Na sociedade da abundância

Uma das minhas duas avós tinha o seu oratório em casa. Nele havia um terço e três imagens: Nossa Senhora de Fátima, acompanhada pelos três pastorinhos, o Sagrado Coração de Jesus e São Francisco Xavier. Rezava o terço com fervor. A Virgem de Fátima era a sua devoção mais ardente. Junto dela e dos pastorinhos, tinha uma fotografia da sua Mãe, falecida repentinamente e que lhe deixara profunda saudade.

Tal como muitos crentes, a minha Avó introduzira nas suas devoções, por desconhecimento, o Dr. Sousa Martins. Este era o elemento deslocado do contexto, como nos jogos do programa infantil Rua Sésamo: um morango, uma maçã, um sapato e uma melancia – o que não pertence ao conjunto?

Quando um dia lhe perguntei por que razão tinha ali o reputado médico, respondeu-me que havia sido um bom profissional e uma boa pessoa, tendo ajudado muita gente em vida. Tentei mostrar a falta de sentido, pois que o Dr. Sousa Martins não só não era santo ou beato reconhecido pela Igreja, como nem sequer tinha sido católico em vida.

Deixá-lo estar!

Não seria melhor tirá-lo dali? Deixá-lo!, respondeu-me. Mal não faz. Muita gente lhe tem pedido e tem sido ajudada.

Vários oratórios incluíam e incluem o famoso médico, cultuado com braçadas e braçadas de flores no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa. Assim, entre a tradição popular e as intelectualisses da neta, a minha avó considerou a primeira mais segura. O seu oratório não se alterou.

As casas com oratório foram e vão rareando. Os objetos amontoam-se nas assoalhadas, embora estas sejam muito maiores do que no século passado.

Não temos espaço

Há mais espaço, mas mais coisas para guardar. Mais roupa, mais louça, mais máquinas, mais alimentos, mais tudo. Multiplicam-se e apuram-se sistemas de arrumação que facilitam a organização doméstica. No entanto, o espaço parece nunca chegar. A casa é cada vez mais para nós. E assim, nós, que somos para Deus, temos lentamente empurrado Deus para fora deste espaço íntimo. Porque as casas são “pequenas”. Porque não temos espaço. Porque deixámos de achar necessário.

Na época em que tentei que a minha Avó abandonasse a devoção do Dr. Sousa Martins, eu considerava o oratório como algo antiquado e dispensável. Além disso, as imagens que via eram geralmente fracas do ponto de vista estético, provocando em mim pena: de quem as tinha feito e do fraco gosto de quem as adquiria. Por outra parte, não encontrava necessidade no uso de imagens para orar.

Como seria bom que esta tradição florescesse

Hoje compreendo a tripla arrogância de que então padecia. ‘Entra na cela’ da tua alma, escrevia Santo Anselmo, no primeiro capítulo do Proslogion, antes de expor o seu famoso argumento para a demonstração da existência de Deus. Para mim, este era o caminho. Hoje vislumbro mais trilhos seguros e, por isso, vejo com pena que a tradição popular de ter um oratório em casa seja tão reduzida. Com ou sem Dr. Sousa Martins (de preferência, sem!), como seria bom que esta tradição, tão salutar, reflorescesse!

Tudo parece garantido, mas, na verdade, está ameaçado

Imagem da autoria de Pasquale Sciancalepore, na ermida de Santa Maria del Amor Hermoso, no campus da Universidade de Navarra.
Imagem da autoria de Pasquale Sciancalepore, na ermida de Santa Maria del Amor Hermoso, no campus da Universidade de Navarra.

Estamos tão acostumados a considerar que o espaço para o culto é um direito que não nos apercebemos do privilégio que é poder tê-lo, em casa e fora dela. Tudo parece garantido. Uma irmã, nascida numa das repúblicas da Europa de Leste durante a ditadura comunista, contou-me como ficou espantada ao saber que existiam tais espaços.

Que revelação lhe chegara de outros países! No seu país, a ditadura tinha terminado; finalmente, podia sair da clandestinidade e ser cristã no mundo. Contudo, no seu mundo não existiam templos. Os exemplares da Bíblia tinham sido destruídos. Os padres, mortos ou banidos. A fé passara de geração em geração pela palavra comunicada e guardada na mente e no coração − sempre em segredo. Assim, a ideia de uma capela parecia-lhe um sonho; um sonho quase bom demais para ser verdade.

Apressou-se, por isso, a fazer a sua primeira capela. A casa onde morava era exígua e muito movimentada; não podia ser lá. Procurou um espaço de recolhimento e encontrou-o. De acordo com a tradição local, os pés de milho, colhidos com as espigas, eram dispostos em formas cónicas, ocas por dentro, semelhantes a um pequeno teepee dos Sioux.

Ficavam (e ainda ficam) a secar. Mesmo antes de imaginar vir a entrar na vida religiosa, a jovem fez daquele espaço de intimidade e recolhimento o sítio onde revigorava o seu espírito fortalecendo a amizade com Jesus Cristo. Anos depois, já na congregação, podia passar pelo sacrário todos os dias. Então, o seu coração enchia-se de alegria; os olhos, de lágrimas.

Há, neste momento em que escrevo, em algum lugar do mundo, alguém que não pode usar símbolos cristãos, ter um oratório em sua casa e ir livremente à missa. Há alguém que está preso por ter feito alguma(s) destas três coisas.

Vivemos na sociedade da abundância. Temos igrejas lindas, com as quais outros cristãos não podem sonhar – mas nem todas se enchem. Poderá apreciar o alimento quem nunca conheceu a fome?

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