Valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz?
No meio do turbilhão desta horripilante guerra na Ucrânia, por parte da Rússia de Vladimir Putin, resolvi apresentar a figura de um estadista que contribuiu – bem ou mal, a história o dirá – para a transformação da vida política e social da Rússia e do mundo. Trata-se de Mikhail Gorbatchov, que recebeu, há mais de trinta anos, a 15 de outubro de 1990, o Prémio Nobel da Paz.
A pergunta que me surgiu logo foi: será que valeu a pena? Com a queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, e a reunificação da Alemanha, a 3 de Outubro de 1990, vivia-se um momento de grande esperança na Europa. E o Nobel da Paz trazia uma mensagem de otimismo ao mundo: tinha acabado a Guerra Fria.
Porém, quem é Mikhail Gorbatchov? Quais as suas origens, o seu percurso, a sua “profecia”?
Gorbachov, agora com 91 anos, é um estadista e político de origem russa e ucraniana. Nasceu a 2 de março de 1931, em Privolnoye, na União Soviética, numa família pobre camponesa. Na sua juventude trabalhou numa fazenda coletiva antes de ingressar no Partido Comunista que, à época, governava a União Soviética sob um regime unipartidário de orientação marxista-leninista. Durante os estudos, na Universidade Estatal de Moscovo, conhece Raissa Titarenko que se tornará sua esposa. Em 1955, licencia-se em Direito e mais tarde também em Economia Agrária. Na sua terra natal inicia a carreira política tornando-se, em 1970, Primeiro Secretário do Comité do Partido Comunista no território de Stravopol. Vai subindo na carreira política até se tornar membro do Comité Central do Partido e, oito anos mais tarde, um dos Secretários do PCUS, em Moscovo. Passado pouco tempo, faz já parte do Politburo do mesmo Comité Central, sendo nomeado presidente do Partido, o mais alto cargo do País, em 1985, com 54 anos de idade.
As viagens na Alemanha, Canadá e Reino Unido abrem-lhe a visão e começa a reconsiderar a maneira de conduzir o seu País e a posição do mesmo dentro do equilíbrio mundial (a dita geopolítica). Durante o XXVII Congresso do PCUS, em fevereiro de 1986, lançou três grandes processos de mudança: a Glasnost (transparência), a Perestroika (reestruturação) e a Uskorenie (aceleração do desenvolvimento económico).
As mudanças detêm a corrida aos armamentos e levam a uma modificação radical da política soviética. Em 1986, Gorbachov e Reagan reuniram-se em Reiquejavique para discutir a redução dos arsenais nucleares instalados na Europa. Em 1987 pôs fim à chamada Doutrina Brezhnev, que havia levado à criação do “bloco oriental” impedindo as nações controladas pela URSS de deixarem o Pacto de Varsóvia. A ação conjunta dos governos da União Soviética, dos EUA e dos principais países do “bloco ocidental” lançou as bases para o fim da Guerra Fria, que, em 1989, levou à queda do Muro de Berlim. Em 1990, o primeiro parlamento russo a ser eleito democraticamente em eleições livres nomeia Gorbachov como presidente da União Soviética, substituindo o cessante Gromyco. No mesmo ano recebeu o Prémio Nobel da Paz pela sua ação contra a corrida aos armamentos.
Ao receber o Nobel, estava no auge da popularidade no Ocidente, mas nem tanto na União Soviética. Apesar de tudo, ainda hoje, continua convicto de que agiu para o bem dos russos e dos povos vizinhos, os polacos, os checos, os búlgaros, os húngaros, os alemães da RDA: “Eu não poderia negar os direitos de liberdade e democracia”.
Ele não poderia imaginar que, um ano após a entrega do Prémio Nobel da Paz, as intrigas à sombra do Kremlin o iriam destronar. A verdade é que a estima e simpatia dos cidadãos russos por Gorbachov não era geral e absoluta, embora os ambientes intelectuais e a parte mais dinâmica dos soviéticos o apreciassem, entendendo bem a relevância do seu contributo para o desarmamento e para o evitar da ameaça nuclear e de um conflito inimaginável com os Estados Unidos. Mas a condição material das famílias era deplorável, os bolsos e os frigoríficos estavam vazios.
Tudo isso abriu caminho para o golpe de agosto de 1991 e o advento de Boris Yeltsin. As grandes esperanças começaram a rachar. E quando a União Soviética se dissolveu e com ela o já vacilante poder de Gorbachev, houve quem proclamasse a grande vitória do modelo encarnado pelo Ocidente com a supremacia dos Estados Unidos. Na verdade, este modelo e suposta supremacia duraram pouco, com a rápida evolução de novos sujeitos: a China, a Rússia de Putin e potências regionais, como a Turquia. E muito por causa da gravíssima crise financeira de 2008, ano em que o Ocidente perdeu muito da sua credibilidade, os sonhos de paz global começaram a dissolver-se.
Não há mais sonhos na política
Já em 2020, alguém dizia: “Uma nova Guerra Fria se aproxima, as desigualdades sociais e económicas estão a afetar a política dos Estados Unidos e da Europa, aumenta a diferença entre uma classe média insustentável e a elite financeira e administrativa… As classes dominantes são incapazes de trazer confiança” (Leonardo Coen). “Não há mais sonhos na política” e Gorbachov foi o último sonho, “foi uma ilusão”.
Talvez seja uma conclusão injusta e pessimista, sobre a figura de um político que se tornou interlocutor de grandes causas, como a paz, o ambiente e a transformação da política mundial. E o atual cenário de guerra pode levar-nos a pensar num retrocesso da vida política, económica e social da Rússia. No entanto e paradoxalmente, após a renúncia forçada de Gorbachov, os russos começaram a sentir mais simpatia por ele do que antes, quando estava no comando da União Soviética. De facto, existe um ditado em Moscovo: “Na Rússia, as pessoas amam aqueles que são ofendidos, humilhados e esmagados”.
Acredito que este sentimento de amor e de solidariedade abrange não só as figuras que contribuíram para o “bem” da Rússia, mas também os “irmãos ucranianos” horrivelmente esmagados neste momento.
O gesto da jornalista russa, Marina Ovsyannikova, que no passado dia 14 de março, invadiu o estúdio durante as notícias do Channel One (principal emissora estatal da Rússia) e exibiu uma placa em que estava escrito “Não à guerra”, foi um ato extraordinário e heróico contra o regime de Putin. Ao correr riscos pessoais muito altos, ela grita bem alto que a oposição à guerra não é uma ilusão e que a paz não é uma utopia!
Foto da capa: Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov na Cimeira de Reykjavik, 1 outubro 1986. Foto da Coleção Fotográfica da Casa Branca, Commons Wikimedia. Retrato de Mikhail Gorbatchov, 12 maio 2010. Foto de Veni Markovski, Commons Wikimedia.