Men in black
Os homems de negro

No verão de 1997, estreou em Portugal um filme chamado MIB (ler eme-ai-bi, em “estrangeiro”) em que um jovem e famoso comediante negro, Will Smith, e um menos jovem, menos comediante e branco, Tommy Lee Jones, eram a dupla implacável pelo bem na luta contra o mal. Aliás, o “subtítulo” do filme explicava-o, sobre uma foto dos heróis de óculos escuros: A proteger a terra da escumalha do universo. No cartaz do filme, ali estão eles, com armas grandes e potentes nas mãos, semblante sério, e vestidos de negro. Men in black.

No mundo das imagens, um dos aspetos que salta à vista são as cores. As cores das peles, das roupas, das casas, da paisagem, das bandeiras, das marcas. Em filmes ou nas séries de TV, além das cores, importa também o tom. Nos encontros e festivais de cinema, há habitualmente um prémio dedicado à fotografia, a esse tratamento da cor e da luz que dá o tom (não só cromático, mas também dramático) ao filme. A fotografia cria a atmosfera do filme ou da série.

De algum modo, sem nome de arte ou de especialização técnica, o fotojornalismo e a grande reportagem televisiva, trabalham tons e cores, contribuindo para traduzir também o ambiente mental da história que se quer contar.

No mundo das imagens, as cores são sinal de adesão (a uma causa, a um clube, a um partido) ou de (bom? Mau?) gosto. São uma forma de comunicar, confirmando ou organizando um determinado discurso, complementando uma causa: o cor-de-rosa do laço de solidariedade com as doentes de cancro da mama, o vermelho da papoila de homenagem aos combatentes britânicos mortos na Grande Guerra.

Isto – ler o mundo através de um código simplista de cores – pode ser um problema por várias razões: porque, da mesma forma que não há apenas uma língua, há também uma babel de linguagens não verbais; porque as cores são representativas, mas não esgotam o sentido das coisas.

A Rússia invadiu a Ucrânia no dia 24 de fevereiro de 2022 e um mês depois, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, cerca de 3 milhões e meio de pessoas já tinham abandonado o país. A saída apressada e desesperada dessas pessoas da Ucrânia no último mês tem sido comentada e acompanhada também pelas cores. Por causa da Ucrânia, cidadãos solidários vestem umas calças azuis e uma camisola amarela; veem-se laços bicolores na lapela ou a enfeitar a carteira; no dia 7 de março, pessoas de criatividade e ação iluminaram o edifício monolítico da embaixada da Rússia em Lisboa com duas grossas faixas de luz colorida: azul e amarelo.

Perante a vaga de refugiados que chega a Portugal – talvez a maior de sempre no nosso país – ouvimos dizer, para justificar a empatia, que “os ucranianos são iguais a nós”. São-no, sim, é certo. Mas porque o dizemos das pessoas ucranianas e não o ouvimos dizer dos sudaneses, dos sírios, dos afegãos? Por causa (também) das cores? Das cores das roupas, da cor da pele? Não somos todos, absolutamente todos, iguais, não no destino, mas nessa dignidade fundamental que o cristianismo reconhece a todas as pessoas?

Como é que nós, Igreja, podemos manter-nos firmes nessa certeza, nessa luta, nesse testemunho sobre a dignidade individual do ser humano? Como podemos contrariar uma certa mercantilização da solidariedade? O que fazer dos homens e mulheres e crianças “feias” e “velhas” e “escuras” e “sujas” de outras paragens, para quem não há caravanas de resgate urgente, portas abertas em casas particulares, escolas pop-up para atuar sem delongas?

Abu Sefo com sua família num campo de refugiados, em Metuge, Moçambique. Foto de Luísa Nhantumbo, LUSA 2021.
Abu Sefo com sua família num campo de refugiados, em Metuge, Moçambique. Foto de Luísa Nhantumbo, LUSA 2021.

Não quero ser mal entendida. Acho as ações de acolhimento absolutamente louváveis, necessárias e inspiradoras, até. Mas há um lado lunar neste Portugal que acolhe de braços abertos as pessoas que chegam da Ucrânia, e que continua a ter pessoas refugiadas de outras geografias há semanas (meses) em centros de acolhimento. Ou simplesmente à porta. De que cores os pintam(os), como são vistos?

Estamos cansados de ouvir: precisamos de lideranças fortes, lideranças solidárias e empáticas. Na Igreja, essas lideranças também devem existir. Não só aquela liderança superior do homem vestido de branco que nos chega do Vaticano, mas a liderança dos Men in black, os padres e bispos que são as lideranças intermédias da Igreja.

Quando se juntam, torna-se muito visível uma certa homogeneidade imagética: homens, caucasianos, alguma calvície, cabelos brancos, vestidos de negro. Nada disto são problemas em si, embora seja óbvio que não representam a realidade plural da humanidade. Os bispos usam uma cruz imponente ao pescoço, pendurada de uma corrente (de) prata, assenta abaixo do externo, antes do umbigo. É bonito ver em alguns bispos um certo atrevimento ao usar cruzes, digamos, menos canónicas.

Aproprio-me livremente e transformo em oração as palavras do Papa Francisco, na visita apostólica à Eslováquia em setembro de 2021: que os homens de negro tenham a cruz não ao pescoço, mas no coração; assim, verão a todos, não como inimigos, mas como irmãos e irmãs.

Que nós também assim o saibamos fazer. Sem cromatismos.

Foto da capa: 3rd European Catholic Social Days, Bratislava, 18 março 2022. Foto Inês Espada Vieira.

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